Aborigines Australianos
Evidentemente Lawlor não apoia a opinião ocidental predominantes de que os aborígines australianos seriam primitivos e antiquados, um grupo de caçadores e extratores que recusam a agricultura, a arquitetura, a escrita, vestimentas e a domesticação d animais. A sobrevivência dos aborígines não é para ele uma curiosidade etnológica, objeto de estudos acadêmicos, mas de uma mensagem viva, “um tipo de inteligência decisiva e há muito ignorada”, que na nossa luta desesperada contra a morte e a transformação fala diretamente ao coração da cultura supermoderna. No seu livro Voices of The first Day : Awakening in The Aboriginal Dreamtime, ele descreve essa visão de mundo com muito entusiasmo e clareza, por exemplo :
“Com as atividades e a religiosidade da agricultura começou a alienação da atenção humana, que se afastou dos sonhos e foi em direção à manipulação física do mundo material. Com o início da agricultura, a população foi ficando geograficamente cada vez mais presa e a sua sobrevivência dependia fortemente da fertilidade e do clima de uma determinada região. A terra era considerada como uma coisa que deveria ser limpa, explorada e tratada arbitrariamente.”
Os aborígines rejeitam a agricultura porque ela, na sua essência, impede a sua participação no tempo de sonhar, que compõe a essência de sua existência. A única palavra (expressão) da cultura dos aborígines que chegou até o nosso dicionário foi o “tempo de sonhar” ou o “sonhar”, que na língua ancestral é tjukurrtjana. A percepção material viva do mundo é traduzida como yuti, que surge da região original do sonho, um estado criativo, fluente da lucidez astral. segundo as palavras de Lawlor isso significa ” o fundamento absoluto da existência ou a base universal do contínuo do qual se originou toda diferenciação”.
Na cosmogênese dos aborígines, o campo da manifestação universal é a consciência, que simplesmente exterioriza ou sonha o mundo dos pensamentos, formas e matéria. Os ancestrais viajaram pelos desertos da despovoada Austrália caçando, guerreando, acampando, amando e organizando. Com isso, eles transformaram um mundo sem contornos em paisagem topográfica. Seus sonhos e aventuras criaram vermes, cangurus, emas, pássaros, cacatuas, serpentes, lagartos, acácias e o homem do mundo inicial. Até o canto é uma ligação para os aborígines, o canto significa o som criador, mântrico.
Suas primeiras existências, esclarece Lawlor, eram em “corpos vibratórios, gigantescos, desprendidos, inconcebíveis, cujos sonhos expressavam plantas e animais, enquanto eles “nomeavam” um modelo de criação específico, transformando palavra em carne, como dizemos no Ocidente cristão. “Eles criavam enquanto projetavam as forças de vibração para fora e as estabilizavam, especificando-as ou nomeando-as, onde o nome interior apresentava a força de uma forma ou criatura”.
O mundo corpóreo vivo é cantado ou nomeado (passando a existir) durante o tempo de sonhar. Para se lembrar do nome profundo e criador, os aborígines olham a paisagem e ouvem a estrofe musical, o atalho sonhador que mantém a ligação mitopoética entre o céu e os ancestrais e a terra dos humanos. Os atalhos sonhadores (no inglês, “songlines”) representam a cosmogênese dos ancestrais sonhadores, os quais, como rastros musicais sutis, estão escritos na paisagem. Os arredores lembram a Criação. Causar estragos na topografia significa “encobrir a história e o significado da humanidade e da realidade”. A superfície da Terra é “um livro de cosmologia”, uma vez que cada história do tempo de sonhar é caracterizada e lembrada através do local onde aconteceu. “Tudo no mundo natural é um rastro simbólico de seres metafísicos, cujas ações criaram nosso mundo. Como grãos, a potencialidade de um lugar está entrelaçada com a memória de sua origem. Os aborígines descrevem esta potencialidade como o sonhar de um lugar, e este sonhar constitui a santidade da Terra.
Os ancestrais cantavam seu caminho sobre toda a Terra, vivenciou o escritor inglês Bruce Chatwin, que durante uma peregrinação quis conhecer os mistérios das terras aborígines. “Eles cantavam os rios, as cordilheiras, os lagos salgados e as dunas de areia, escreve Chatwim em seu livro : Caminhos do Sonho. “Eles caçavam, comiam, amavam, dançavam : onde quer que seus caminhos os conduzissem, ficavam um rastro de música. Eles envolveram o mundo todo numa rede de canções.”
A responsabilidade ritual e cíclica de cada tribo é a de conservar os caminhos de sonhar dos ancestrais, quando não a de reviver o ciclo das canções da tribo entoado “na sequência correta” como parte da sua viagem no sonhar através da paisagem simbólica.
Dessa maneira, eles praticam um tipo de ecologia coletiva, um tipo de consultório ecológico em um nível metafísico. Negligenciar ou erra o canto pode “descriar” o que já foi criado.
Segundo lawlor, para os aborígines a paisagem e o espiritualismo são indissolúveis e cada momento é a revelação do primeiro dia. “O ritual dos aborígines, fundamentalmente sua cultura como um todo, é uma confirmação efetiva do tempo de sonhar da criação.
” Com sua forte convicção nessa dimensão mística, cada tribo recebe seu próprio trecho das trilhas que percorrem o continente australiano “como lembrança do sonhar original do protótipo invisível e metafísico” carregando suas vozes e sementes.
O lugar, ngurra, é para os aborígines até mesmo o fundamento da identidade pessoal. Ngurra significa terra, jazigo ou lugar, uma região que foi criada através das ações metafísicas dos ancestrais míticos quando eles sonhavam transformando o mundo em existência. Lawlor esclarece que, entre os aborígines, logo depois do nascimento se cava um buraco na terra e se coloca a criança dentro. O lugar determina a relação indissolúvel da criança com a natureza para o resto da vida. A criança tem determinadas responsabilidades com aquele buraco, porque ele significa o início de sua identidade e o centro da sua terra. trata-se de um eixo personalizado num panorama completamente mitológico do ponto exato da sua ligação com o céu. Cada lugar é mitologicamente vivo, tem seu modelo de energia peculiar, seu som específico, seu próprio totem do tempo de sonhar e espécie de plantas e animais peculiares como se fossem assinaturas do lugar. Suponhamos que seu lugar de nascimento seja o lugar de sonhar de um gambá; segundo Lawlor, isso significa que o espírito daquela espécie saiu dessa região. Como parte do treinamento da sua iniciação, a pessoa visitaria novamente este local com seus instrumentos de precisão da ciência da magia natural, o didjeridoo, um instrumento musical de sopro, comprido e oco, e lá recriaria a essência vibratória do sonho do gambá. Através de um processo sinestésico – no qual seus cindo sentidos se misturam e se fundem e a pessoa ouve e vê sons – o som o didjeridoo lhe possibilita penetrar na essência do lugar. O som lhe parece como um totem dos animais.
A pessoa reconhece, então o sonhar do gambá como um outro aspecto de si mesma, uma vez que, no tempo de sonhar, características animais e humanas eram originalmente ligadas às personalidades dos ancestrais.
Cada espécie de animal representa um estado sentimental subjetivado dos deuses. Apenas no estágio de manifestação do yuti é que o mundo material se divide entre o material e o humano.
Enquanto partilha o sonhar do gambá como seu totem geomântico, a pessoa se encontra automaticamente numa relação de parentesco com todos os irmãos e irmãs da mesma espécie. Por exemplo: um clã se origina do tempo de sonhar de ancestrais dos cangurus, o que significa que todos os componentes do clã tem uma determinada responsabilidade com os cangurus, suas historias, cerimoniais e determinadas localidades de sonhar. “Acredita-se que o espírito de uma determinada espécie do mundo espiritual penetra no mundo material de um ambiente físico.
A região pertence apropriadamente ao espírito desta espécie, e não ao clã que ele representa. por isso, a sociedade aborígine se entrelaça, desde o seu nascimento, numa rede de geomancia, animismo, totemismo e a experiência da iniciação.” Um novo iniciado aborígine aceita um ponto predeterminado no tecido do caminho do sonhar, que forma a paisagem sagrada como um prolongamento do seu próprio corpo. “Enquanto eles caminham e ampliam o seu conhecimento cultural, a memória e o mundo espacial também são ampliados como um prolongamento de si mesmos. O caminho do sonhar que atravessa a terra corre como suas próprias veias e artérias.” Como no corpo humano, a terra também é considerada indivisível.
O conhecimento mítico interiorizado e sua ilustração topográfica, que é pintada no corpo do aborígine quando da sua iniciação, é o único mapa geográfico da região que eles possuem. ” Do tempo de sonhar também se originou a ligação profunda da geomancia, animismo, parentesco, ritual, espiritualidade e o papel adequado da mulher e do homem na sociedade.
A legitimidade inata dos papéis dos sexos, para os aborígines, se originou dos três campos do tempo de sonhar em que se divide a existência: o campo dos mortos, o campo dos vivos e dos moribundos e o campo dos não-nascidos. O resultado é descrito por Lawlor como “uma cosmologia da energia sexual”.
O campo dos mortos é o lugar celestial, para o qual os moribundos viajam após sua morte corpórea – é a esfera do universo masculino.
Lawlor diz que a energia masculina está vinculada à força da morte, à caça, ao ato de matar, ao enterro, às cerimônias, à iniciação e à comunicação espiritual com as vozes do tempo de sonhar dos ancestrais.
A força feminina, ao contrário, predomina no mundo dos vivos e dos moribundos, no mundo do concreto da natureza, do nascimento, da vida, da alimentação, do desenvolvimento e crescimento. Os aborígines dizem que as mulheres nasceram da natureza, mas os homens foram feitos pela cultura. A responsabilidade pelo campo dos não-nascidos – “o mundo das energias potenciais que se reúnem em torno das fronteiras da vida e que se aglomeram depois do limiar” – é dividida entre homens e mulheres.
A combinação harmônica dos três campos ao se assumir a responsabilidade dos sexos conduz a uma cultura estável com uma continuidade de cerca de 60 mil anos. Segundo Lawlor, os papéis tanto do homem como da mulher são necessários para a continuação do mundo material. se mulheres e homens se desviam dessa defesa de prioridade e hegemonias originadas cosmologicamente, por causa do patriarcalismo e da agricultura, os resultados são catastróficos.
Lawlor observa que “no patriarcalismo ocidental, os homens tentam submeter o campo feminino e o mundo material às suas capacidades e hegemonia. Inoportunamente, eles trazem um procedimento e uma mentalidade desincorporada do tempo ao mundo dos vivos”. Quando a relação homem-mulher se desequilibra, então a relação humana com a natureza e com o planejamento também se desequilibra de maneira perigosa. “Eles tratam a Terra como a sociedade trata a mulher. Na minha opinião, a crise ambiental do Ocidente baseia-se em modelos de relacionamentos.”Lawlor não é o primeiro comentarista moderno a apresentar o comportamento sexual dos aborígines australianos para um público intelectual no Ocidente.
No início do século, quando Sigmundo Freud dizia que uma grande parte da psique e da cultura ocidental se submetia à sexualidade inconsciente, alguns de seus admiradores, como diz Rohein em : The Gates of the Dream (Os Portões do Sonho), se apressaram em evidenciar a cultura dos aborígines como um exemplo clássico de uma sexualidade infantil, uma fase que antecedeu a civilização européia.
Segundo Lawlor, o que Roheim apresentou numa visão ainda depreciada é, hoje 90 anos após, digno de ser seguido. Será que a visão dos aborígines se distancia dos pensamentos iniciais e da especulação do nosso tempo ? Será que os campos morfogenéticos do biólogo inglês Rupert Sheldrake não seriam uma outra interpretação dos sonhos polimorfos dos ancestrais ? Será que a popularidade incomum de Findhorn e suas comunicações com os espíritos da natureza não trouxeram o animismo de volta à paisagem cultural ocidental dos anos 70 ?
As filosofias da ecologia profunda, do ecofeminismo e do budismo engajado, interligadas, se propõem a estender a identidade pessoal, integrando o reino vegetal e animal numa nova identidade, a qual é descrita como ego ecológico.
Muitas das mais estranhas imagens que surgiram sobre os aborígines estão em concordância óbvia e absoluta com uma das principais correntes esotéricas do século XXI : a antroposofia.
Segundo Lawlor, tudo isso não deveria nos surpreender. O espírito original da consciência do primeiro dia, que ficou adormecido tanto tempo na natureza e na psique, renasce. O tempo de sonhar ainda assegura a semente preciosa da renovação cultural, a qual é desejada e sonhada pelo subconsciente ocidental há no mínimo três séculos