Ilé Axe do Apô Afonja
Léo Artese
Em 1982, tive a honra de conhecer Yá Stella, no Ilé Axe do Apô Afonja em Cabula, na Bahia. Lembro-me muito bem dos seus olhos firmes, da sua presença que irradiava uma força, que era quase impossível deixar de olhá-la. Foi tudo de um sincronismo imenso. Cheguei numa quinta-feira com uma carta de apresentação de um Ogan ; O Getúlio e de sua filha de Santo Odaléia de Ewá. Tudo por contato do meu padrinho de batismo, o Cidão de Xangô, um grande pai-de-santo e o responsável pela minha iniciação nos mistérios espirituais.
Chegar numa quinta-feira foi bom, por ser o dia da semana consagrado a Oxossi, e também por ser irmão de santo da Mãe Stella. Foi quando jogou os búzios, confirmando meu santo, cruzou uma linda guia verde de cristais para mim, e levou-me para conhecer o sítio, as casas dos orixás, e na noite ganhei um prêmio num sorteio que foi muito importante para mim. Conversamos bastante, e senti-me abençoado ao sair de sua casa.
Em 1967 Ya Stella sucedeu Mãe Senhora, no Axé Apô Afonjá, terreiro que inspirou Pierre Fatumbí Verger.
Mãe Stella de Oxossi
Iya Odé Kayode, Maria Stella de Azevedo Santos, nasceu em Salvador, em 02 de maio de 1925. Foi iniciada por Mãe Senhora. Desde junho de 1976, quando tomou posse como Iyalorixá, que seu trabalho se caracteriza por manter e preservar à medida que muda, transforma e cuida dos fundamentos e práticas religiosas. Suas entrevistas, sua participação na Comunidade, seu brado contra o sincretismo, expressam sua força, crença e caráter. Iya Stella é um marco e também uma continuidade da tradição religiosa trazida pelos Babalorixás e Iyalorixás que aqui chegaram.
Oké Aró
Salve Yá Stella
*Segue abaixo texto extraído do Ilé Axé Apô Afonjá : http://www.geocities.com/ileaxeopoafonja/index.html*
A palavra candomblé é sinônimo de religião africana. Sempre foi e é usada ainda neste sentido. Isto explica muitas coisas. Vejamos. O negro foi arrancado de sua terra e vendido como uma mercadoria, escravizado. Aqui ele chegou escravo, objeto; de sua terra ele partiu livre, homem. Na viagem, no tráfico, ele perdeu personalidade, representatividade, mas sua cultura, sua história, suas paisagens, suas vivências vieram com ele. Estas sementes, estes conhecimentos encontraram um solo, uma terra parecida com a África, embora estranhamente povoada. O medo se impunha, mas a fé, a crença – o que se sabia – exigia ser expresso. Surgiram os cultos (onilé – confundidos mais tarde com o culto do Caboclo, uma das primeiras versões do sincretismo), surgiu a raiva e a necessidade de ser livre. Apareceram os feitiços (ebós), os quilombos.
Os trezentos anos da história da escravidão do negro no Brasil, atestam acima de tudo, a resistência, a organização dos negros. A cultura africana sobreviveu para o negro através de sua crença, de sua religião. O que se acredita, se deseja, é mais forte do que o que se vive, sempre que há uma situação limite. A religião, sua organização em terreiros (roças), foi como muito já se escreveu, a resistência negra. Resistiu-se por haver organização. A organização consigo mesmo. Cada negro tinha, ou sabia que seu avô teve, um farol, um guia, um orixá protetor.
No meio dos objetos traficados (os escravos) haviam joias raras: Babalorixás e Iyalorixás. Estes sacerdotes, inteiros nas suas crenças, criaram a África no Brasil. Esta mágica, esta organização reestruturante só é possível de ser entendida se pensarmos no que é a iniciação , todo processo que implica e estabelece. A cana de açúcar do Senhor de Engenho era plantada por Iaôs recém saídos das camarinhas, dos roncós.
A força se espalhou, o axé cresceu e apareceu na sociedade sob a forma dos terreiros de candomblé (religião de negros yorubá como é definido no Dicionário de Aurélio Buarque). Era coisa de negros, portanto escusa, ignorante, desprezível e rapidamente traduzida como coisa ruim, coisa do diabo, bem e mal, certo e errado, branco e preto. Antagonismos opressores, sem possibilidades alternativas. O negro resolveu tentar agir como se fora branco, para ser aceito. Ele dizia:
– meu Senhor, a gente tá tocando para Senhor do Bomfim, seu Santo, nhô! Não é para Oxalá, quer dizer, Oxalá é o Pai Nosso, é o mesmo que Senhor do Bomfim. Sincretismo. Forma de resistência que criou grande onus, severas cicatrizes desfiguradoras. O processo social, a dinâmica é implacável. A imobilidade não se mantém. O filho do africano já dizia que não confiava em negro brasileiro (o sìgìdì, por exemplo, um encantamento de invisibilidade e criação de elemental, não foi ensinado). Muito se perdeu, a terra africana reduziu-se a pequenos torrões, o candomblé era eficaz; o Senhor procurava a negra velha para fazer um feitiço, para que lhe desse um banho de folha, lhe desse um patuá. Proliferação de terreiros. Massificação, turismo, folclore.
Mas os grandes iniciados, iguais àqueles criadores da terra africana no Brasil, ainda existem. Odé Kayode – Mãe Stella de Oxossi , em 1983, dizia: “Iansã não é Santa Bárbara”, e explicava. Mostrou que candomblé não era uma seita, era uma religião independente do catolicismo. A terra tremeu; algumas pessoas falavam: “- sempre fomos à missa, sempre a última benção, depois da iniciação, era na Igreja, fazemos missa de corpo presente quando alguém morre, não pode mudar isso”. Era a tradição alienada versus a revolução coerente, era a quebra do último grilhão. A represa foi quebrada e as águas fertilizaram os campos quase estéreis da sobrevivência. O negro é livre. Veio da África, tem uma história, tem uma religião igual à qualquer outra e ainda, não é politeista, é monoteista: acima de todos os Orixás está Olorum. Nina Rodrigues conta que uma vez perguntou a um Babalorixá porque ele não recebia Olorum, já que este existia. Ouvindo a seguinte resposta: “- Meu Doutor, se eu recebesse, eu explodia”.
Agora um novo limite, uma nova configuração se instala. Neste fim de século com a corrosão das instituições religiosas tradicionais, com o surgimento de novas religiões, com as doutrinas esotéricas alternativas, o candomblé, agora considerado religião, é visto também como uma agência eficiente: resolve problemas, cura doenças, acalma as cabeças. Os brancos querem ser negros, já não se ouve “o negro de alma branca”, agora o privilégio é ser um branco de alma negra, ter ancestralidade, “ter enredo, história com o Santo”. Mais do que nunca as Iyalorixás e Babalorixás se questionam. As armadilhas, os “caça-fugitivos” estão instalados. São os congressos, a TV – é a mídia – os livros, a ‘web’, em certo sentido. Tudo isto é transformado, por nós, em pinças para separar o joio do trigo, por isso estamos aqui. Dizendo o que somos, damos condição para que se perceba o que está posto e se entenda o suposto, o oposto e o aposto. Diferenciação é conhecimento, candomblé é religião, não é seita.
As Iyalorixás organizam as cabeças. O processo de organização do ori é awo (segredo). O candomblé é uma religião que trabalha com o segredo, o lado mudo do ser, o que a Olorum pertence. O candomblé organiza o fragmentado, abrindo canais de expressão para o ser humano.
Amor – Paz e Luz !
Léo Artese