Clarice Novaes da Mota – Jurema – Entrevista
Entrevista feita em 2005
Clarisse ingressou na ex-Universidade do Brasil em 1963, curso de Ciências Sociais da Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro. Participou do Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação, tendo sido treinada pelo Prof. Paulo Freire. Viveu no México em 1964.
Nos Estados Unidos em 1965,ingressou na Temple University, formando-se em Psicologia em 1969. Fez Mestrado em Antropologia Social na New School for Social Research, obtendo o grau de Mestre em 1977. Foi professora de antropologia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de 1979 a 2000. Obteve o grau de doutor em Antropologia Social pela University of Texas at Austin, em 1987, com bolsa de doutorado pelo CNPq. Publicou os livros: Jurema’s Children in the Forest of Spirits: ritual and healing among two Brazilian indigenous groups (Londres: Intermediate Technologies Publications, 1997) e As muitas faces da Jurema: de espécie botânica à divindade afro-indígena, com Ulysses Paulino de Albuquerque (Recife: Bagaço,2002). Tem vários artigos publicados em livros e periódicos. É também ex-presidente da Associação Nação de Jurema.
Léo: *Você poderia dar um breve relato da sua busca espiritual até chegar na Jurema?
Clarice: Tudo começou com Michael Harner e a Transamazônica! Eu era estudante de antropologia na New School For Social Research, em Nova York, e o Michael era meu professor. Eu estava fora do Brasil há quase 11 anos e me preocupavam as notícias sobre os desmatamentos da Amazônia e a conseqüência para com os indígenas da região. Harner começava a falar sobre xamanismo, mas ainda ligado a sua formação antropológica, e me incentivava a procurar plantas psicoativas quando fosse fazer a minha pesquisa.
A princípio eu ia para a Amazônia e cheguei a contatar a FUNAI sobre ir aos Maku, no Alto Rio Negro, mas meu pai, que era sergipano, me instava a que trabalhasse com indígenas nordestinos. Ora, isso era o fim dos anos setenta, e praticamente ninguém no Brasil pensava em trabalhar com indígenas nordestinos porque nem se acreditava que existissem, ou não eram considerados como indígenas. Acabei assentindo e fui parar entre os Kariri Xocó. Harner ficou insistindo que eu procurasse saber qual era a planta mágica que eles usavam, pois assegurava que praticamente todas as nações indígenas usam princípios xamânicos e a ligação com uma realidade extraordinária através de uma ou várias plantas. Então, veja bem, eu fui fazer o trabalho não exatamente numa busca espiritual, mas como pesquisadora. Terminou, e claro, me afetando em termos de meus valores e crenças.
Léo: *Como foi seu primeiro contato com Mamãe Jurema?
Clarice: Em 1984, eu estava pesquisando sobre a Jurema, ou seja, sobre o uso de plantas medicinais em geral, junto aos Kariri-Xocó, e o pajé Francisco Suíra, falecido em 1990, me contava sobre a magia da Jurema entre eles, explicando sobre o segredo indígena em torno do uso da Jurema, já que ela era a planta mágica que os ajudava a encarar sua vida como índios contemporâneos e a seguir adiante com dignidade e poder. Pedi-lhe que me deixasse tomar a jurema e ele, a princípio, disse que não, que eu não estava preparada, que era uma força maior do que a que eu poderia tolerar. Não insisti, mas um dia ele me chamou a noite, na casa de um companheiro seu, que morava na cidade de Colégio, não na aldeia.
Quando entrei, senti um cheiro pungente no ar, misturado a cheiro de mato queimado, de fumaça, etc. Ele me disse que estavam preparando a jurema para eu tomar, assim, a queima-roupa. Falou que era uma poção “Especial” porque eu já estava aprendendo bastante. Felizmente eu não tinha jantado, pois ele me disse que era melhor tomar com estomago vazio. Não fizeram nada diferente, não cantaram, nem armaram nada, mas o pote estava na cozinha, ele disse que há dois dias estavam cozinhando aquela jurema pra mim.
Perguntei como tinha sido preparada, e como sempre, ele foi misterioso, dizendo muito laconicamente que as cascas da raiz tinham sido cozinhadas por três dias, não tinha mistura nenhuma. Eram só as cascas. Eu já tinha lido que sem misturar com outra coisa, a DMT não faria efeito, então relaxei. Por outro lado, eu tinha muita confiança em seu Francisquinho, o pajé, e sabia que ele não me poria em nenhuma situação de perigo. Ficamos em silêncio durante algum tempo, e eu comecei a sentir um torpor agradável, de quem pode esperar a vida inteira por algo muito bom, muito profundo, sem mágoa, sem aflição, sem medo, sentia-me leve, isto antes de tomar a bebida.
Seu Francisquinho disse que “a fada da planta” estava ali entre nós. Quando me trouxeram o chá, foi num copo comum, como copo de café. A bebida já estava quase fria, era muito amarga, mas sem nenhum gosto especial. Todos me olhavam com um sorrisinho entre os lábios, eram uns 3 velhos, mas eu só conhecia seu Francisquinho e seu Pinto Neco, o “sogro” dele, que não era indígena, mas entendia muito sobre plantas medicinais e magia. Lembro-me de que não senti nada do que esperava, não fiquei sonolenta, nem entrei declaradamente em transe, nem vi imagens. Era tudo muito tranqüilo, uma conversa entre amigos numa noite qualquer. O pajé me disse que eu tinha que ir pra casa me deitar. Fui.
Estava hospedada na casa do agente da FUNAI em Colégio. Dormi imediatamente um sono bastante pesado. Quando acordei sentia-me “quase” normal, digo quase porque eu sou em geral uma pessoa ansiosa, que quer fazer logo as coisas, descobrir logo tudo, seguir adiante, etc. Não sou muito paciente. Me letárgica, e lembro de ter ficado olhando o rio São Francisco por um bom tempo, parada na beira do rio, na rua que leva à aldeia, sem fazer absolutamente nada, algo inédito pra mim. Tive a sensação de que vi uma sereia saindo das águas e comecei a rir de mim mesma.Eu tinha visto a mesma sereia uma noite a beira do rio Xingu, depois de fumar maconha. “Essa sereia me persegue”, pensei. Mas era uma sensação boa, de quem faz uma descoberta inédita. De repente, eu soube o quão importante era a jurema pra eles. Soube, com uma certeza absoluta, que sem a jurema eles iriam acabar perdendo tudo, se destrilhando de seu destino indígena. Eu ouvia uma cantiga dentro do meu coração, algo que não consegui jamais decifrar ou reproduzir, realmente como se fosse o canto de uma sereia. Soube inclusive que eu jamais poderia passar adiante o canto, mesmo que pudesse reproduzi-lo, pois era algo muito profundo, muito recôndito, algo perdido pelos ancestrais, pois era um presente que eu recebia só pra mim, pra mais ninguém.
Quando reencontrei seu Francisquinho, ele me disse que dali por diante eu teria sonhos premonitórios, que minha visão ia se abrir e que um dia eu acabaria entendendo tudo sobre eles, sobre os índios, mas que era gradual.
Léo: *Gostaria que você me desse uma explicação sobre a mimosa hostilis, suas origens….quais as nações que a utilizam como sacramento espiritual?
Clarice: Bem, a Mimosa hostilis foi recentemente rebatizada como Mimosa tenueflora, é um arbusto endêmico das caatingas nordestinas, geralmente usado como alimento pelo gado solto nos pastos, mas tem sido usada como “a planta mágica” pelos nativos, desde o Rio Grande do Norte até Sergipe.
Praticamente todas as nações indígenas do nordeste a conhecem e usam. Há um bonito documentário feito pela Mercia Batista e Rachel Rocha intitulado “A cienciazinha Turká”, na qual se vê a coleta, preparo e ritual de uso da Jurema entre os Turká. Os Fulniô também a usam constantemente, além dos Kariri-Xocó e Xocó (estes últimos em Sergipe). Foi isolado um alkaloide nas raízes da Mimosa h. e chamado de nigerina, um análogo do N, Ndimetiltriptamina, que é um alucinógeno, mas que só faz efeito se ingerido pelas vias respiratórias e não pelo trato digestivo. Se for ingerido como bebida, esta tem que ser misturada com outro composto para poder ser potencializado o efeito alucinógeno. A Yatra Silveira acha que o outro elemento é a Peganum harmala, uma erva que contém alkaloides beta-carbolino: Harmina, harmalina, tetra-hidroharmina, nas suas sementes. É uma planta de origem na Pérsia e na Índia, tendo sido usada como o Soma sagrado das gentes nativas daquelas regiões.
A Mimosa hostilis ou tenueflora é conhecida popularmente como Jurema negra, Jurema braba, Jurema de espinhos e Jurema de caboclo. Há outra planta também conhecida como Jurema, que é a Mimosa verrucosa. Os índios dizem que esta é a Jurema branca, “que não endoida”, ou seja, não dá visões, mas acalma e alimenta a alma dos penitentes. Por alguma razão, por mim desconhecida, os Kariri-Xocó não têm tomado a Jurema nos seus últimos encontros no Ouricuri sagrado deles. Esta informação me foi passada pelo próprio pajé atual deles, assim como por um dos participantes.
Léo: Você poderia falar algo sobre a utilização no Catimbó, na Umbanda…as diferenças de preparo?
Clarice: Não sei sobre o Catimbó, mas sei que na Umbanda não se usa a Mimosa hostilis, e nem a verrucosa, fazem um tipo de beberagem que inclui cascas de abacaxi fermentada, pois a Jurema da Umbanda é nada mais que um personagem de cabocla, ou seja, um ser espiritual pertencente aos nativos brasileiros, onde o imaginário popular apresenta a Jurema como representação dos povos nativos. Geralmente, tanto na Umbanda como no Candomblé de Caboclo, a Jurema é associada com uma festa na qual se come e se bebe a comida dos “caboclos”, mas não se toma nenhum enteógeno, pois é a batida dos atabaques e pontos de chamada que induzem ao transe.
Léo: O que é a Associação Nação de Jurema?
Clarice: A Associação de Jurema era uma ONG dirigida por mim, com sede em Aracaju, que se dedicava a realizar projetos e eventos culturais sobre os grupos indígenas nordestinos, principalmente os Xocó de Sergipe, e os Kariri-Xocó de Alagoas, para fomentar um maior entendimento sobre a vida e a cultura desses grupos, promovendo ações em prol dos mesmos. Tinha esse nome porque consideramos que esses grupos são “nações nativas” de seguidores da jurema ancestral. Não bebíamos, nem preparávamos a jurema, a única vez em que o fizemos foi numa reunião muito privada, sem público, com alguns membros da diretoria.
Fizemos duas grandes festas, quando os Kariri-Xocó vieram e dançaram seus torés para um bom público, venderam artesanato, etc. Também promovemos a participação dos Kariri-Xocó numa feira de Natal, onde eles venderam artesanato e remédios botânicos que estavam sendo produzidos na “farmácia viva” deles, um projeto que eu iniciei, com apoio do Banco Mundial e da Associação Nação de Jurema, mas que não teve sucesso, devido a vários fatores que não podem ser discutidos em pouco espaço de tempo. Conseguimos alguns apoios institucionais para os índios, com envio de cestas básicas em dois fim de ano, quando se distribuem cestas para as famílias carentes. Organizamos uma mostra fotográfica, em Aracaju, por três meses, chamada “O fio da memória indígena em Sergipe e Alagoas”, que foi inaugurada com uma mesa-redonda da qual participou, entre outras pessoas, o pajé Kariri-Xocó.
Quando eu me mudei para Maceió, tentei dar continuidade ao nosso trabalho, mas em vão, era o tipo de organização, ou de pessoas associadas, que não precendia da minha presença, infelizmente. Portanto, não está mais operante, embora ainda tenha existência legal.
Léo: O que mais você acha importante que o público do xamanismo saiba sobre seu trabalho? Como você vê, como antropóloga, esse resgate do xamanismonos tempos atuais? Como vê o uso de enteógenos.
Clarice: Sobre meu trabalho? Sou apenas mais uma peregrina aqui nesse planeta tentando desvendar alguns mistérios que nos levem à paz e ao amor eterno. A questão da Jurema, que sempre tanto me fascina, assim como a muita gente,eu passei para as mãos de jovens antropólogos e cineastas, com sede de conhecimento e que estão levando esse trabalho de pesquisa e resgate da cultura indígena adiante. São eles agora que respondem a minhas inquietações sobre os usos da jurema.
Vou te responder à segunda pergunta não só como antropóloga, mas primeiramente como ser humano mesmo. Isto porque a visão do antropólogo às vezes faz a gente bloquear certos conceitos e idéias ancestrais, já que a gente tem que ser “objetivo” e “científico”.
A humanidade passa por um momento crucial no qual todo conhecimento ancestral que pode nos levar à cura do planeta terra é de importância fundamental. Portanto, o trabalho xamânico continua sendo aquele que,juntamente com outras correntes do pensamento que nos levam á consciência universal, ao espírito criador, pode nos ajudar a elevar as consciências humanas de tal forma que possamos salvar a terra e os seres que nela vivem.
Há um movimento dentro das comunidades nativas do mundo inteiro para que se mantenha viva a tradição milenar de cura espiritual e física, que possa atender às necessidades de salvação não só das comunidades, mas das pessoas que estão fora dela. Os nativos de várias nações estão tendo um maior interesse em passar informações até então secretas para pessoas de fora de sua comunidade, para os buscadores que têm uma intenção pura de aprender responsavelmente, passando essas tradições adiante da forma mais respeitosa possível.
As plantas sagradas, os enteógenos, têm um papel fundamental nisso, mas é preciso atentar bem para que esses milagres não sejam desperdiçados em mentes que só buscam seu próprio prazer ou que fogem da realidade, em vez de buscá-la com todo o coração, pois vivemos em um mundo de ilusões e os enteógenos não são para se viver ilusões maiores, mas para escapar delas e assim descobrir a sabedoria contida no não-dualismo.
Quando Jesus de Nazaré dizia que “a verdade te libertará” ele repetia um moto xamânico de grande antiguidade.Se eu for olhar, tanto como simplesmente ser Humano ou como profissional da antropologia, os diversos grupos, comunidades e pessoas que trabalham com o xamanismo aí é outra história.
Em todo movimento, há aqueles que são verdadeiros, que são responsáveis, que são dignos de confiança e os que buscam somente seu próprio prazer, satisfazer seus egos, seus desejos de poder, ou de sei lá mais o quê.
É desses que tenho medo, pois podem atrapalhar em muito essa jornada de renascimento xamânico tão importante. Chagdud Tulku Rinpoche, o lama tibetano que trouxe sua linhagem para o Brasil, escreve algo que vou citar pois é disso exatamente que estou tratando.
Ao escrever sobre a necessidade que praticantes do budismo têm de encontrar um mestre, ele nos adverte contra alguns:”Aqueles que se fingem de mestres, enganando a si próprios e aos outros, têm tanto para manter sua fachada quanto o comprimento da cauda de um porquinho da Índia. Depois de um curto período, já não são tão convincentes.
Antes de aceitarmos alguém como nosso professor ou professora, precisamos examinar com cuidado as qualidades e capacidades dele ou dela. Embora um falso professor possa não ter intenções negativas, aceitar uma pessoa assim é como beber veneno.” (“Portões da prática budista”, p.264)
Tenho visto coisas assim muito esdrúxulas acontecendo no meio de acontecimentos importantes do xamanismo universal. Tem gente realmente bebendo veneno e que estão impossibilitadas de absorver o sagrado. Estas coisas me preocupam, pois as pessoas deixam de vivenciar a clareza dos ensinamentos de quem tem a “intenção pura” para cair nas tramas sem sentido daqueles que buscam por fama, reconhecimento, e outros motivos essencialmente egocêntricos.
Para contatar Clarice: clarice@infonet.com.br