Deusas Devoradoras
Rosane Volpatto
AS DEUSAS DEVORADORAS DAS AMÉRICAS
As culturas americanas desenvolveram-se de uma forma totalmente independente do mundo antigo. As notáveis correspondências entre os simbolismos dos dois mundos fundam-se em alicerces arquetípicos.
No México, a mitologia solar foi dominante, enquanto que a mitologia lunar permaneceu nas culturas costeiras ao longo do litoral da América do Sul, principalmente no Peru. Aqui o Grande Feminino é considerado a “mulher da lua”, “a esposa do mar” e o mar noturno e o céu noturno são a mesma coisa, pois a noite é o Grande Círculo, uma unidade composta do mundo inferior, mar noturno e céu noturno que engloba todas as criaturas vivas.
Na cultura matriarcal dos Chimus, que dominaram a costa Norte do Peru, encontramos uma mitologia lunar em que a lua pode representar um herói como o nascimento dos seres humanos e dos heróis a partir do ovo, o símbolo da lua.
Enquanto a psicologia matriarcal ligada à noite-lua que predomina no Peru seria eclipsada pela cultura patriarcal inca somente em um momento posterior, verifica-se na cultura mexicana uma dominância patriarcal mais evidente. Á princípio a grande quantidade de deusas astecas parecem inviabilizar uma classificação das mesmas. Mas, é possível nesse caso constatar a uniformidade arquetípica subjacente dando prosseguimento à análise das interligações existentes entre elas.
No início dos tempos, apresenta-se o pai divino, Tonacatecuhtli e a mãe divina, Tonacacihuatl, também chamados de “Senhor e Senhora da nossa carne”, cuja morada é no décimo terceiro e mais elevado dos céus. Sua origem jamais ninguém conseguiu esclarecer. Eles foram o casal primordial, também conhecidos como Ometecuhtli e Ometecihuatl, “Senhor e Senhora dos Dois”. Ambos ocupam o primeiro lugar no calendário porque são os criadores dos tempos primordiais, sendo que a parte masculina é associada ao céu e ao fogo e a parte feminina com a terra e com a água. Eles tiveram quatro filhos: Tezcaplipoca, Quetzalcoatl, Xipe e Huitzipochtli, as quatro principais deidades mexicanas.
Os deuses primitivos mais análogos a estas deidades urobóricas eram bissexuais, o que sugere que cada uma das ambas contém em si a força criadora da procriação. O nome deles “Senhor e Senhora da nossa carne”, significa não só “Senhores da nossa substância vital”, mas ao mesmo tempo, os “Senhores do Milho”, isto é, eles são uma deidade tanto da gênese como da vida vegetal.
CHICOMECOATL, A DEUSA MAIS ANTIGA
Chicomecoatl, a “Mãe do Milho” e dos gêneros alimentícios é tida como a divindade mais antiga da América. Seu nome é traduzido como “sete serpentes”. As cerimônias dedicadas à esta deusa são comemoradas no mês Huei Tozoztli e seus templos são então, decorados com milho e as sementes depositadas nele são abençoadas.
Ela é também a deusa da volúpia e do pecado e que gera e renova a vegetação através do ato sexual. É portanto, uma deusa da fertilidade que inclui a Terra como os seres humanos. É frequentemente retratada com o rosto pintado de vermelho e com espigas de milho presas nas orelhas. Dizem que ela é a irmã do deus da chuva, Tlaloc.
Ela traz consigo a caveira, e a vítima feminina do sacrifício feito em sua louvação é decapitada. Como aspecto invernal da terra letal, ela coloca-se em oposição à terra fecunda, que está associada ao Oriente e à primavera. Com seu traje de serpentes, ela empunha a faca de silex e possui as garras de jaguar, animal que é inimigo arquetípico da luz, considerado atributo negativo masculino e companheiro do Feminino Terrível que como Grande Mãe, traja o manto da noite com as luas.
O jaguar era o Senhor das montanhas e das cavernas, do eco, dos animais selvagens, dos tambores de chamadas, da escuridão devoradora e do céu noturno. Existe um mito em que a unidade de terra e céu noturno se divide, significando que a unidade original dos primórdios é diferenciada. A deusa terra é trazida para baixo, vindo do céu primordial e é desmembrada. É em função deste desmebramento que ela passa a ser origem de todos os víveres.
Mas ela não possui somente um caráter bondoso, por vezes a deusa incorpora a Mãe Terrível. Conta-se que ela bradava durante a noite clamando por corações quentes. Não se acalmava enquanto estes não lhe fossem trazidos e se recusava a fertilizar a terra enquanto não estivesse encharcada de sangue humano.
JAGUAR/ÁGUIA
O jaguar, deus do número Nove, que é a expressão das regiões “inferiores”, senhor da escuridão é o inimigo da águia, o símbolo solar e as lutas míticas entre luz e trevas que compõe o mundo asteca é visto nas batalhas entre os guerreiros-jaguares contra os guerreiros-águias. A águia pode ser considerada a substituta do Sol (ela é a única que pode olhar para o astro, sem dano aos olhos), do fogo celeste e da mais alta divindade urânica.
A terra é representada na forma de uma boca de jaguar devorando o Sol no crepúsculo, portanto a terra representava o monstro insaciável que não só devora os mortos, mas também arrasta para as profundezas o Sol e as Estrelas.
LUGAR DAS MULHERES/OCIDENTE
A abertura ocidental por onde desce o Sol também é, no México, o útero arquetípico da morte que extermina o que nasceu. Para os astecas entretanto, o ocidente é o “lugar das mulheres”, buraco primitivo da terra por onde nasceu a humanidade. O ocidente seria então a residência dos deuses primordiais, a terra natal do milho e o lar mítico original de todas as raças.
Esta mistura de símbolos positivos e negativos num mesmo local (ocidente) e sua relação com a alimentação são típicas da natureza “urubórica” inicial do homem. Mas é só depois do mundo ser sido criado e depois da derrubada da árvore simbólica do lar original é que o ocidente se torna um local de morte.
O símbolo das mulheres mortas no parto, tornando-se demônios femininos atormentados, também pertencem ao simbolismo do ocidente. Elas representam o poder do tempo antes dos tempos, como demônios femininos da aurora matriarcal, elas ainda são aquelas dos últimos dias que engolirão a humanidade quando o fim do mundo se aproximar e com isso causarão o desmoronamento e a colisão do Sol, da Lua e das Estrelas é quando toda a humanidade será tragada.
A concepção de mundo do povo asteca é marcada pela crença de que a noite do infortúnio está à espreita de qualquer ser vivo. O universo asteca pode ser caracterizado como instável e permanentemente ameaçado. Além das as suas quatro eras terminarem em catástrofe, o calendário que abrange cinquenta e dois anos, anuncia um ano “ce-actl”, um ano de possível fim dos tempos. Este lapso de cinquenta e dois anos é análogo ao horário da meia-noite de um dia completo e ao solstício de inverno, referente a um ano. Nestas ocasiões, todos os vasos são destruídos e todo o fogo é apagado. É a hora do julgamento e a passagem deste perigoso momento é celebrada com júbilo orgiástico.
MUNDO PATRIARCAL?
Pelo que se conhece a concepção asteca de mundo é patriarcal, pois o princípio da Luz e do Sol é dominante. Entretanto, fazendo-se uma análise mais precisa chega-se a uma imagem inteiramente nova.
Ao lado do rei-sol, sempre há uma personagem feminina que leva o nome de Mãe-Terra, conhecida como “Mulher Serpente”. Ela era o árbitro para as questões internas da tribo. Ao Rei dos Homens e à Mulher Serpente haviam duplas obrigações, no que se refere às atividades civis e religiosas. Ao rei cabia conduzir os trabalhos e a Mulher supervisionava os templos, organizava os ritos e os assuntos do clero.
Aqui visualiza-se um povo cujo o seu caráter original era matriarcal e que foi sobreposta por instituições patriarcais. Esta análise é extremamente elucidativa para a história do desenvolvimento humano.
RELIGIÃO da OBSIDIANA
Os sacrifícios humanos realizados, não eram somente para garantir a fertilidade da terra, mas demonstram claramente o terror que a consciência masculina tinha pelo lado obscuro, feminino, noturno do inconsciente. Eles consistiam em arrancar o coração da vítima ainda viva, pelo esquartejamento ou decapitação. Estas mortes são oriundas, como no Egito, de um estrato matriarcal ultrapassado, cujos vestígios ainda podem ser detectados no mito asteca e nos seus ritos, como no “circuito austral do inferno” em que se praticava o degolamento e o desmembramento.
Esta necessidade de fecundar a terra feminina com sangue constela o Grande Feminino como terrível, esquartejadora e mortífera. Este é o motivo pelo qual a grande divindade materna asteca é Senhora da Faca Obsidiana, usada para o esquartejamento e que, e em seu aspecto de deusa lunar, recebe o nome de “faca de pedra branca”.
A taça de sacrifício utilizada para recolher o sangue do sacrificado é um atributo da Mãe Terrível, com qualidade de “taça de morte”. Aqui ela recebe o nome de “Mulher Águia”, em função dos corações sacrificados à águia e o Sol. A taça possui um sapo ilustrado no fundo, é a “taça da águia”. O símbolo da taça de sangue ainda hoje povoa o inconsciente do ser humano, tanto nas fantasias como nos sonhos.
Itzpapalotl, deusa-obsidiana (borboleta obsidiana), relacionada à caça, originalmente era representada por um dragão, tendo se tornado mais tarde uma deusa da caça com asas de borboleta, cujas as bordas eram de obsidiana. O culto à arma encantada está ligado à ela, assim como todas as deusas primordiais da morte e da caça. Até mesmo o deus Tezcatlipoca é um deus da obsidiana e tem o mesmo papel sagrado da faca produzida por este material.
A fé primitiva dos astecas pode ser chamada de “religião da obsidiana”, pois esta arma sagrada e mágica, vinda do céu é o símbolo da Grande Mãe sanguinária, portadora da vida e da morte, que ao ser desmembrada deu origem a todo o tipo de vida.
Posteriormente com a transição da caça para a lavoura, os deuses tomaram outros aspectos. A deusa-obsidiana da caça, a borboleta-obsidiana é descrita em um hino antigo como uma “deusa melão-cacto” e a Grande Deusa passa a ser associada à terra. O seu filho, fruto da fertilidade passa a ser o milho e ela se torna a deusa da fertilidade do milho. Entretanto sua fama de terrível persiste e o ato de arrancar do pé a espiga de milho passa a ser análoga ao de extirpar o coração da vítima sacrificada com a ajuda da faca de obsidiana.
Este duplo aspecto, em que a vida se torna morte e esta passa à vida aparece repetidas vezes no mito e nos rituais astecas. Este aspecto evidencia-se no sacrifício de sangue.
A humanidade primitiva era incitada a praticar ritos sanguinários, do mesmo modo que na atualidade o homem promove guerras para saciar sua sede de sangue. Em ambos os casos , estas ações se julgam “inocentes”.
A Grande Mãe sempre esteve ligada à dualidade Lua/Terra, Vida/Morte. O mistério da fecundação está vinculado à Lua e seu desmembramento. Aqui a Lua significa tanto o filho fecundador quanto o o desmembrado.
No México, a região austral da decapitação e do desmembramento corresponde ao mundo terrível dos portões subterrâneos egípcios. No centro, há uma figura medonha com duas facas de obsidiana no lugar de sua cabeça e de todas as suas articulações projetam-se facas.
A Grande Mãe, incorporando a deusa da morte, carrega a faca obsidiana e o deus da Lua, Xipe Totek, possui uma máscara feita de tais facas, está relacionado àquela e participa de seu ritual, em que o filho juvenil é esquartejado ou castrado. Este é um auto-sacrifício da Lua que conduz ao seu renascimento. Xipe é o paralelo masculino da deusa terra e lua, que também personifica os alimentos, tanto o pé de milho, quanto o próprio milho.
FESTIVIDADES
A identificação do deus Xipe masculino com a Deusa Terra se repete, nas festas das colheitas. Os ritos destes festivais compõem-se de danças, combates simulados, sacrifícios, exibindo também óbvias analogias com ritos nupciais. O casamento da mãe com o filho serve de fundamento para a festa e esclarece seus traços característicos, não compreendidos até então.
No sacrifício a morte da mãe do milho e da terra leva ao nascimento do milho (filho). O milho (filho) com a pele da Mãe Terra sacrificada é a imagem da gravidez desta mãe (transformação de feminino-masculino), que se consolida a partir do sangue feminino sacrificado.
O milho é o símbolo fálico da fertilidade e corresponde ao deus-grão-de-trigo da cultura europeia ocidental.
As batalhas fazem parte da festa do esfolamento. É uma luta entre um prisioneiro sem armas contra um guerreiro munido de todas elas (armas), que, naturalmente termina com a morte e sacrifício do primeiro. O prisioneiro é morto em uma posição igualada à de parto. Neste contexto se diz que quando a mulher dá à luz a uma criança, ela fez “um prisioneiro” e quando ela morre no parto é designada como “prisioneira sacrificada”. Para entender este ritual, cabe-nos dizer que Itzpapalotl, a deusa que morreu durante o parto é conhecida como a antiga heroína e como a deusa sacrificada. A ela estão associados os demônios femininos do ocidente que já nos são familiar como as mulheres que morreram de parto.