Leonardo Boff


Entender a realidade como teia intrincada de relações, como vimos em nosso artigo anterior, é situar-se no seio daquela experiência que permitiu a moderna cosmologia falar de espírito. Nisso ela coincide com as tradições transculturais da humanidade. ‘Spiritus’ para os latinos, ‘pneuma’ para os gregos, ‘ruah’ para os hebreus,’mana’ para os melanésios, ‘axé’ para os nagô e iorubá da África e seus descendentes nas Américas, ‘wakan’ para os indígenas dakotas, ‘ki’ pra os povos da Ásia norte-oriental, ‘shi’ para os chineses; pouco importam os nomes, sempre temos a ver com uma energia originária que tudo perpassa, que faz do universo um incomensurável organismo e se manifesta como realidade em emergência, em flutuação e em abertura para o novo, numa palavra, como vida e espírito.

Foi o animismo (animus = espírito) que captou essa dimensão da realidade. Como notaram notáveis antropólogos como E. B. Taylor, o animismo não configura uma visão mágica, antes, uma maneira coerente de ler o universo e cada coisa a partir do princípio da interação, da vida e do espírito. Nós modernos somos também, de nosso jeito, animistas na medida em que vivenciamos o mundo afetivamente e não apenas como objeto neutro. Tudo tem valor e transmite uma mensagem, os animais, as árvores, os ventos, as casas e as pessoas. Todos eles possuem, por sua presença, um dinamismo que nos afeta e nos faz interagir. Eles são portadores de espírito; porque falam e estão carregados de simbolismo. Por causa desta irradiação é possível a poesia, a arte, a inspiração em cada ordem de conhecimento até naquele mais formalizado da física.

O xamanismo surge desta leitura da realidade. O xamã não é simplesmente um entusiasta, mas alguém que tem acesso às energias cósmicas e através de sons, ritos e danças as torna benfazejas para os seres humanos. Cada um possui sua dimensão xamânica que, despertada, nos ajuda na sintonia com o equilíbrio dinâmico de todas as coisas. Quando falamos do espírito humano, não nos referimos a uma parte mas ao todo do ser humano, ao seu modo de ser autoconsciente, capaz de perceber totalidades e de ser um nó de relações, voltado em todas as direções.

A fonte originária de todo o ser foi chamada com freqüência de espírito. Dizer Deus é Espírito, é expressar Deus no quadro da vida, da comunicação, da criatividade, da paixão e do amor. Vale dizer, aquela energia que subjaz a todas as demais energias, enche todos os espaços e tempos e continuamente cria e recria: o Spiritus Creator. Os cristãos em seu credo professam: Cremos no Espírito Santo, Senhor e Fonte de vida. A expressão Senhor e Fonte de vida expressa a conexão do Espírito com a vida e o espírito na criação. Em nós se revela como entusiasmo (em grego, ter um Deus dentro). O Espírito está em todas as coisas e todas as coisas, no Espírito. Eis o pan-en-espiritualismo, similar ao pan-en-terismo (não é panteísmo).

Do Oriente nos veio esse pequeno poema que bem traduz a mútua presença: O Espírito dorme na pedra, sonha na flor, acorda no animal e sabe que está acordado no ser humano. Tal visão nos propicia uma fecunda mística cósmico-ecológica. Encontramos-nos mergulhados num campo de absoluta energia que alimenta as energias do universo e a nossa própria energia vital e espiritual.

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