Passagem do Mestre Irineu
No dia 6 de julho de 1971, às 9:00 da manhã, Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu, o grande fundador da Doutrina do Santo Daime fez sua passagem aos 79 anos de vida. A notícia de seu falecimento parou a cidade de Rio Branco. O Governador do Estado divulgou nota oficial de pesar. O corpo do Mestre, de farda branca, foi colocado no centro da sede. Durante o restante do dia e por toda a noite foram cantados os hinários principais da Doutrina.
O texto abaixo é extraído do livro “Eu Venho de Longe” Mestre Irineu e seus companheiros, de Edward MacRae e Paulo Moreira:
Fala-se que, meses antes de sua morte, Mestre Irineu recebeu presságios da sua passagem, diz-se que foram comunicações de sua guia espiritual, a Rainha da Floresta. Ele vinha sentindo pioras de seus problemas renais e cardíacos. Chegou a passar até três dias em coma, em estado febril. Vários dos Hinos Novos (Cruzeirinho) foram recebidos após longos estados de letargia. Durante as crises mais graves organizavam-se comissões que atuavam em turnos para assisti-lo. Eram claros os sinais de que seu fim estava próximo. Ao acordar de sua última crise febril, Mestre Irineu recebeu o hino 128 – Cheguei Nesta Casa em que fica explícito o tema de sua partida
Segundo D. Percília Ribeiro ele teria recebido após seu aniversário, por volta dos dias 17 ou 18 de dezembro de 1970, a primeira dessas comunicações, na forma do hino 129 – Pisei na Terra Fria. Nessa época, os seus seguidores vinham acompanhando a piora de sua saúde e, ao ouvirem o novo hino, entraram em estado de tristeza profunda, muitos até caindo aos prantos, temendo o pior. Paulo Serra comentou sobre o recebimento do hino 129 – Pisei na Terra Fria:
Quando ele teve um problema, aí ele recebeu esse hino. Todo mundo chorava, aquela confusão medonha e tal. Aí, que ele disse: “Pediram a minha volta e eu voltei e tal […]” . Pensei, aí, depois ele recebeu “Terra Fria”.
Assim, dias depois do recebimento do hino, Mestre Irineu viu-se obrigado a convocar uma reunião para apaziguar o sofrimento dos seus seguidores. Segundo Wilson Carneiro, ele chamou uma reunião e esclareceu:
“Esse hino não é só para mim, é para todo mundo, todo mundo que nasce morre”.
Segundo Júlio Carioca, membro da diretoria do CICLU:
Um dia o Mestre Irineu me chamou e disse que sua professora havia lhe dito que um dos avisos que ela lhe daria quando estivesse perto dele fazer sua passagem era a presença de um padre na sua sede. Portanto, quando, na segunda quinzena de junho de 1971, depois do festejo de São João Batista (o último hinário oficial do qual Mestre Irineu participou), ao despontar de uma bela tarde, apareceu no portão de Mestre Irineu Padre Pacífico, acompanhado de duas freiras, a visita foi recebida como portentosa. Júlio Carioca estava presente na hora e diz ter ouvido
Mestre Irineu exclamar: “Que tempo é esse? minha mãe!”. De imediato, ele teria se lembrado do aviso que sua guia tinha lhe feito. Comenta-se que ele recebeu muito bem o padre e as duas freiras. Antigos seguidores falam que ele ficou conversando com o padre, enquanto D. Peregrina e Lourdes Carioca atendiam às freiras. O padre pediu a Mestre Irineu permissão para assistir a um ritual do Daime e Mestre Irineu de imediato aceitou, marcando a ocasião para o dia 14 de julho, aniversário de D. Peregrina. Esse trabalho seria um misto de apresentação para os padres
e um presente para D. Peregrina. Segundo Júlio Carioca: Assim que eles saíram, seu Mestre Irineu me chamou e disse:
“Júlio, amanhã você vai à cidade e avise a todo mundo que dia 14 o fardamento é branco, para esta apresentação ao padre.”
Mestre Irineu complementou: “Recebam eles com todas as honras.” Considera-se que essas suas palavras finais para Júlio Carioca já prenunciavam o que estava para acontecer. Seria uma maneira de Mestre Irineu dar a entender que não estaria mais presente. Logo depois, perguntaram a Mestre Irineu se ele queria que fosse feito um trabalho no dia
30 de julho de 1971. Fala-se que ele aceitou. Nesse tempo, embora já tivesse passado a presidência dos trabalhos para Leôncio Gomes, diz-se que Mestre Irineu o advertira, de que ele iria assumir a direção dos trabalhos,
mas que não quisesse ser chefe, pois a chefia ainda continuaria com ele, no “astral”.
Arneide Cemin colheu um interessante relato anônimo da maneira em que Mestre Irineu preparou Leôncio Gomes para assumir a função, submetendo-o a uma fortíssima experiência com o daime, que parece remeter ao antigo costume dos ayahuasqueiros indígenas de ocasionalmente tomar a bebida em busca de fortalecimento. Percebe-se, no decorrer da descrição desse evento, como apesar de estar passando o comando dos trabalhos ao seu seguidor, Mestre Irineu mantém a sua preponderância sobre ele.
Leôncio Gomes, quando foi pra preparar de receber o cargo de presidente, que o velho [Irineu] já tava preparando ele já sabendo da partida que ele tinha de fazer, Leôncio passou de nove horas da noite até três horas da
madrugada. Tinha tomado meio copo de daime, passou de nove horas da noite até três horas da madrugada, dizendo que ele não era ninguém,que ele agüentava. E o Mestre de lá [de sua casa] preparando ele, levando ele no ponto
que ele haveria de chegar. Quando deu três horas da madrugada, disse:
“Agora ele já tá preparado, traz o Leôncio de lá pra cá”. No que o Leôncio veio, jogou-se nos pés do Mestre Irineu dizendo:
“Me acuda, meu chefe”.
Mestre Irineu botou a mão na cabeça dele e disse: “Levante, que fraqueza é essa?”
Leôncio levantou, parecia que nunca tinha tomado daime, desde nove horas da noite que tava sofrendo, na preparação que ele achava que não dava conta do recado, até três horas da madrugada.
De acordo com outro relato, depois da concentração do dia 30, Mestre Irineu perguntou se alguém tinha visto o seu enterro. Embora a maioria dissesse que não, seu filho Valcírio teria visto seu pai num caixão, mas ficou calado. Mestre Irineu disse então que havia visto a Virgem Soberana Mãe, a Rainha da Floresta, e que esta havia declarado: “De hoje em diante, você é o chefe geral desta missão”. Comenta-se que foi nesse momento, após cinquenta anos de trabalho, que ele teria finalmente recebido o “comando no astral” (o que seria uma espécie de grau espiritual eternizado; na linguagem da encantaria maranhense “virou encantado”).
“Você é o chefe. No céu, na terra e no mar. Para todos os efeitos. Todo aquele que se lembrar de você e chamar por você, de coração, e confiar, receberá a luz”.
D. Percília Ribeiro:
Nessa época, houve um pedido da irmandade para que o Mestre ficasse.Nós perguntamos e ele chegou a contar: “Eu não sinto dor. Eu não sinto fome. Eu não sinto nada. O que eu sinto é não ter para quem entregar o meu trabalho. E saudades de vocês. Eu sinto uma saudade tão grande de vocês que é isto que está me abatendo.” Ele, com certeza, estava sabendo de sua passagem e sabia que a maior parte não estava preparada. E não era por falta de ensino. Todos sabiam que, quando precisassem de algo, era só correr e perguntar ao Mestre. Todos achavam que nunca haveriam de ficar sem ele. .
Perto do dia 30 de junho de 1971 perguntei para ele: “O senhor não gostaria de uma Concentração para melhorar sua saúde?” Ele respondeu:
“É bom! Então vamos fazer. Chame o pessoal mais próximo.”
Mas, dias antes dessa Concentração, ele já tinha chamado o Leôncio Gomes e entregado a direção dos trabalhos:
“Leôncio, você vai tomar a direção dos trabalhos. Você não vai ser chefe. A chefia é comigo mesmo.
No dia 30, nos reunimos para a Concentração. Quando terminou, ele perguntou para o povo: “Quem foi que viu o meu enterro?” As pessoas disseram que não tinham visto nada. E ele falou que tinha recebido um remédio e que ia ficar bom.
“E que remédio é esse, Mestre?”
“É um remédio que tem em todo canto.”
Continuou. “Eu cheguei num salão onde tinha uma mesa ornada, toda composta, com as cadeiras em seu lugar. Só tinha uma cadeira vazia: a da cabeceira.” Foi aí que a Virgem Soberana Mãe chegou ao lado dele e disse: “De hoje
em diante, você é o chefe geral desta missão.”
Depois de 50 anos de trabalho é que ele foi receber o comando. “Você é o chefe. No céu, na terra e no mar. Para todos os efeitos. Todo aquele que se lembrar de você e chamar por você, de coração, e confiar, receberá a luz.” Isso foi no dia 30 de junho de 1971. No dia 06 de julho, ele foi embora. E a história do remédio é a terra, que se pisa em cima. Ele não foi para debaixo da terra? E ninguém entendeu. Ele não disse que tem em todo canto? É a própria terra […].
Comenta-se que, mesmo ciente de sua “passagem”, Mestre Irineu preferiu não dizer nada para seus seguidores. Diz-se também que sua guia espiritual lhe dissera que a escolha do dia em que deveria fazer sua “passagem” estava em suas mãos. Observemos o depoimento abaixo de João Rodrigues sobre este tema:
Um dia ele disse pra mim que ele ia se perpetuar. Tanto que, quando chegou a notícia que ele tinha falecido, eu estava achando que era mentira de quem chegou dizendo. Mas, na realidade foi verdade. Depois eu fui juntar os pingos nos i. Ele me disse na realidade que estava fazendo a viagem, mas […]. Mas, eu não peguei direitinho. […]
Eu perguntei a ele antes (do dia da concentração) qual era o estado de saúde dele. Ele disse: “Estou bem compadre.”
“Está bem mesmo padrinho?”
“Estou.”
“Mas, tá bem mesmo padrinho?”
Eu insisti um pouquinho. Ele disse:
“É compadre, só esse frio que está me acatruzando um pouco. Mas a minha cura está em minhas mãos. A minha mãe me disse que botou em minhas mãos. A hora que eu quiser fazer a minha passagem eu faço. Não vai demorar muito não.”
Nós fizemos o trabalho em uma quarta e ele foi, na terça, então, deu sete.12 (João Rodrigues)
Na manhã de segunda-feira, dia 5 de julho de 1971, D. Percília Ribeiro passou na casa de Mestre Irineu, como sempre fazia. Ele estava alegre, bem disposto, não dava sinais que estaria prestes a falecer e pediu a D. Percília que ela ficasse mais um pouco. Ela atendeu a seu pedido e ficou com ele até cerca das três da tarde. Parecia-lhe que ele estava realmente bem e, assim, ela finalmente resolveu se despedir dele, pedindo-lhe a benção. Ao sair, Mestre Irineu, de uma maneira que não era de seu costume, lhe fez a recomendação que fosse muito feliz.
Uma das versões conta que Mestre Irineu estaria deitado numa rede quando sofreu a crise urinária seguida
por um infarto. Fala-se que, nesse instante, Mestre Irineu se levantou da rede, ficou em pé e logo depois desfaleceu nos braços de Chico Martins, que o colocou novamente na rede, já sem vida. Comenta-se que ele estava suando muito, com um largo sorriso e lágrimas lhe caindo no rosto. Nesse momento, deram-se conta de que Mestre Irineu já não estava mais vivo. Eram nove horas da manhã de terça-feira do dia 6 de julho de 1971.
Após a morte de Mestre Irineu, a notícia correu rapidamente e a tristeza tomou a comunidade e as redondezas do centro. Em pouco tempo, a notícia ganhou dimensão. O radialista Mota de Oliveira, uma das últimas
pessoas curadas por Mestre Irineu, anunciava seu falecimento nas ondas da Rádio Capital. A cidade de Rio Branco parava para ouvir a triste notícia. Os membros da irmandade do Daime que moravam na capital, eram golpeados pela notícia da perda.
Ao Mestre Irineu, como passaria mais tarde à história, foi revelada uma doutrina de cunho cristão e eclético, reunindo tradições católicas, espíritas, esotéricas, caboclas e indígenas em torno do uso ritual do milenar chá conhecido pelos povos íncas como ayahuasca (vinho das almas) e por ele denominado Santo Daime
Mestre Irineu ainda realiza curas na doutrina. Deixou mensagens canalizadas através de um conjunto de hinos (hinário) inspirados pela Rainha da Floresta e Seres Divinos. Canções de poder que transmitem com uma linguagem simples e poética cabocla, os ensinamentos bíblicos.
Ele é a célula-mater de várias instituições ayahuasqueiras organizadas em vários pontos do país e do mundo.Fundou a doutrina que prega a Harmonia, o Amor, a Verdade e a Justiça. Um legítimo legado xamânico brasileiro, nascido onde temos a nossa maior força: Nossas Florestas.