Plantas que curam

A antropóloga Beatriz Caiuby Labate é uma voz altiva e ativa no universo da pesquisa acadêmica brasileira sobre o uso das plantas de poder e, em especial, da ayahuasca (1). Aos 33 anos, Bia Labate já trilhou boa parte do vasto território-alvo de sua pesquisa e, literalmente, colocou o pé na estrada, nos últimos nove anos, viajando pelo Brasil, Peru, Colômbia, México e África.

Suas andanças, em busca da gênese e da história de distintas culturas e agrupamentos que fazem uso tradicional ou contemporâneo das plantas psicoativas, lhe renderam a co-organização do livro O Uso Ritual da Ayahuasca (Mercado de Letras, 2002), onde conseguiu reunir, numa edição virtuosa, a palavra de xamãs, vegetalistas, etnólogos, cientistas sociais e psiconautas (pesquisadores empíricos e científicos de psicoativos), tornando-se referência no campo de estudos sobre as religiosidades urbanas contemporâneas e o psicodelismo.

Seu mais recente livro, A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos (também editado pelo Mercado de Letras, 2004), recebeu o prêmio de melhor trabalho de mestrado, em 2000, pela Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais  ANPOCS

 

Plantas que Curam – Bia Labate

 

As plantas psicoativas têm sido utilizadas há cinquenta mil anos pela humanidade, em diferentes culturas e épocas, sendo objeto de culto e reverência ou de demonização. A paixão que despertam revela-se, em primeiro lugar, pela própria maneira de nomeá-las. Alguns pesquisadores têm criticado o termo científico alucinógeno, por sugerir uma percepção falsa e ilusória da realidade. Uma opção adotada tem sido enteógeno, originário do grego antigo, com o significado de Deus dentro ou o que leva o divino para dentro de si. Outra, mais ligada à contracultura, é psicodélico, aquilo que revela o espírito ou alma. Alguns preferem utilizar termos nativos, como é o caso de plantas professoras, expressão característica do vegetalismo peruano, ou adotar denominações que sublinhem as dimensões neurofarmacológicas comuns às várias substâncias, como a proposta por Michael Winkelman, plantas psicointegradoras, aquelas que integram os hemisférios direito e esquerdo do cérebro.

As diversas populações que fazem uso dessas substâncias consideram, em geral, que elas são habitadas por um espírito, uma mãe, um dono  com o qual podemos nos comunicar e aprender. Elas seriam, portanto, um espírito-planta. Um traço comum aos variados contextos é a crença de que, por meio dessas substâncias, é possível estabelecer contato com o mundo espiritual, com os seres divinos, e transcender as fronteiras da morte. Historicamente, o uso de tais psicoativos tem sido associado ao reforço da identidade étnica, à promoção da coesão social, à transmissão de valores culturais, à produção artística, à morte simbólica do ego, ao autoconhecimento, à resolução de conflitos sociais, à guerra, à feitiçaria, à caça, ao poder político e cósmico, à metamorfose em animais e à divinação, entre outros.

Uma das dimensões centrais das plantas de poder é a sua conexão estreita com os sistemas de cura, seja através da figura do xamã, seja através das religiões institucionalizadas. A cura propiciaria uma conexão holística entre processos mentais, emocionais e espirituais  mesmo porque, em alguns dos contextos onde estas substâncias são consumidas, tais esferas são consideradas inseparáveis. A ciência norte-americana dos anos 50 e 60 desenvolveu diversas pesquisas e experimentações sobre as virtudes médicas e terapêuticas dos psicoativos, sobretudo antes da proibição legal do LSD nos EUA, em 1966. Entretanto, o tema permanece ainda pouco estudado, além de fortemente estigmatizado.

Os assim chamados estados alterados de consciência não são provocados apenas por substâncias químicas. Eles também podem ser produzidos por estímulos auditivos, jejuns nutricionais, isolamento social e de privação sensorial, meditação, estados de sono, abstinência sexual, comportamento motor intensivo, opiáceos endógenos e estados mentais resultantes de alterações na neurofisiologia ou química corporal. Vamos nos deter aqui sobre duas plantas que têm sido usada ritualmente, na África e na América do Sul, como formas de transe e cura, a iboga e a ayahuasca, tentando compreender os seus múltiplos contextos de uso e aplicações.

Tabernanthe iboga

Trata-se de um arbusto com uma raiz subterrânea que chega a atingir 1,50m de altura, pertencente ao gênero Tabernanthe, composto por várias espécies. A que mais tem interessado a medicina ocidental é a Tabernanthe iboga, encontrada nos Camarões, Gabão, República Central Africana, Congo, República Democrática do Congo, Angola e Guiné Equatorial. Seu principal alcalóide é a ibogaína, extraída da casca da raiz.

Algumas espécies animais, entre as quais os mandris e os javalis, alimentam-se das raízes da iboga para conseguir efeitos entorpecentes. Imagina-se que os pigmeus descobriram a eboka (iboga) observando o comportamento desses animais. Até hoje, estas populações utilizam a iboga em seus ritos.

Em 1901, a ibogaína foi isolada pela primeira vez. Há notícia de que ela teria sido usada no Ocidente desde o início do século XX, no tratamento de gripe, neurastemia, doenças infecciosas e relacionadas ao sono.

Em 1962, Howard Lotsof, um jovem dependente de heroína, acabou descobrindo, por acaso, a iboga na África. Após uma viagem astral de 36 horas, relatou que perdeu o desejo de consumir heroína por completo. Em 1983, Lostsof relatou as propriedades antiaditivas da ibogaína e em 1985 obteve quatro patentes nos EUA para o tratamento de dependências de ópio, cocaína, anfetamina, etanol e nicotina. Fundou o International Coalition for Addicts Self Help e desenvolveu o método Endabuse, uma farmacoterapia experimental que faz uso da ibogaíne HCl, a forma solúvel da ibogaína. Através da administração de uma única dose, cujo efeito dura dois dias, haveria uma atenuação severa dos sintomas de abstinência e uma perda do desejo de consumir drogas por um período mais ou menos longo de tempo.

Atualmente, a iboga é utilizada por curandeiros tradicionais dos países da bacia do Congo e na religião do Buiti na Guiné Equatorial, Camarões e, sobretudo, no Gabão, onde membros importantes das hierarquias políticas do país são adeptos do culto. Aproveita-se principalmente a casca da raiz mas também se atribuem propriedades medicinais às folhas, à casca do tronco e à raiz. No Gabão, a raiz e a casca da raiz são encontradas facilmente nas farmácias tradicionais e nos mercados das principais cidades. A iboga  pode ser utilizada sozinha ou em combinação com outras plantas  uma parte desse conhecimento permanece secreto. Segundo depoimentos que colhi nos Camarões em 2001, ela é empregada no tratamento da depressão, da picada de cobra, da impotência masculina, da esterilidade feminina, da AIDS e também como estimulante e afrodisíaco. De acordo com as crenças locais, seria eficaz, ainda, sobre as doenças místicas, como é o caso da possessão.

Existem dois tipos de Buiti: o tradicional, que rejeita o cristianismo, e o sincrético, o mais difundido. O primeiro é praticado pelos Mitsogho e o segundo pelos Fang, ambos grupos Bantu. É provável que durante o século XIX os pigmeus tenham transmitido seus conhecimentos aos Apindji, que os teriam passado, por sua vez, aos Mitsogho, ambas populações do sul do Gabão. Esses grupos elaboraram durante o século XIX um culto dos mortos, o Buiti tradicional. O Buiti sincrético ou Fang foi formado por ocasião da primeira guerra mundial. Ele é produto de influências do Buiti tradicional, do culto ancestral, característico dos Fang, o Bieri (que utiliza uma outra planta psicoativa) e da evangelização cristã. Existe, ainda, um outro culto que utiliza a iboga, o Abri, até hoje pouco investigado. Esse último é comandado por mulheres e dedica- se ao tratamento de doenças por meio da iboga e de outros vegetais medicinais.

A religião buitista contempla um rito de iniciação que dura três dias. Na abertura, o candidato confessa seus pecados e toma um banho ritual. Ele passa, então, a ingerir, em jejum, uma enorme quantidade de iboga (pode chegar a 500g) e de ossoup, uma espécie de chá frio feito com a raiz da planta. O grupo acompanha o neófito durante a prière, onde todos cantam, tocam e dançam noite a dentro.

A iniciação tem como objetivo produzir um suposto coma induzido  os estudiosos ainda não conseguiram defini-lo com precisão. De acordo com os adeptos, em algum momento o espírito sai do corpo e viaja para o plano da criação. Podem-se receber revelações, curas de enfermidades ou comunicar-se com os ancestrais. A citar (harpa sagrada) orienta a viagem e traz o espírito de volta. Terminada a cerimônia, o indivíduo  renascido com uma nova identidade, bandzi, ‘aquele que comeu’  deve relatar suas visões ao grupo.

Podem ocorrer mortes nos rituais de iniciação do Buiti. Segundo os líderes, isto pode acontecer devido a diversos fatores, como a incompetência do guerriseur, a administração da planta a um doente muito debilitado ou, ainda, pelo fato de o paciente ser um bruxo. Os Fang conhecem uma folha-antídoto (Ebebing) que anula o efeito da iboga.

A literatura científica sobre o tema é controversa. Sabe-se que a ibogaína produz perda do equilíbrio corporal, tremores, aumento da temperatura corpórea, da pressão e da frequência cardíaca. Estudos com ratos e primatas demonstraram que a ibogaína em quantidade de 100 mg/kg é neurotóxica (a dose utilizada no tratamento de Lotsof é normalmente de 25 mg/kg). Ela é diferente de outros medicamentos, na medida em que é a única substância conhecida que age diretamente sobre o suposto mecanismo da dependência no corpo humano. Entretanto, não se conhece ao certo seu grau de eficácia e não existe nenhum estudo científico que comprove que a ibogaína cure a dependência química; há apenas evidências anedóticas.

Os tratamentos com ibogaína não são autorizados nos Estados Unidos, Reino Unido, França ou Suíça. Mesmo assim, têm sido adotados clandestinamente. No Panamá, a instituição liderada por Lotsof cobra 15 mil dólares; na Itália, o custo é de 2.500 dólares, e, nos EUA, o tratamento varia entre 500 e 2.500 dólares. Em Israel, a iboga está sendo pesquisada para uso no tratamento da síndrome de pós-guerra que afeta os soldados.

De acordo com o médico italiano Antonio Bianchi, a ibogaína age sobre uma enorme quantidade de receptores neuronais. Sua característica fundamental é sua ação sobre a NMDA (N-metil-D-aspartate). Esses receptores estão presentes sobretudo em duas áreas: o hipocampo, que controla a memória e as recordações, e a sensibilidade proprioceptiva, parte responsável pela sensação que temos do nosso corpo físico. Se esses receptores forem bloqueados, a pessoa construirá uma imagem do eu que não está relacionada com o eu físico, ou seja, sentir-se-á fora do corpo. Este seria o mecanismo neurofisiológico da viagem astral, o ponto de encontro entre as concepções religiosas e as científicas. Nessas condições, o homem tende a construir aquilo que é definido como uma bird-eye image, assumindo uma projeção de si mesmo a partir de uma posição do alto  experiência também recorrente nos relatos da ayahuasca.

Banisteriopsis caapi
o xamanismo indígena e o vegetalismo

A palavra ayahuasca pertence à língua quéchua. De acordo com estudiosos, “Aya” quer dizer dead person, soul, spirit e “Waska” significa cord, liana, vine. Assim, poder-se-ia traduzir ayahuasca em português como corda (liana, cipó) dos mortos (da alma, dos espíritos). A ayahuasca geralmente consiste na infusão do cipó Banisteriopsis caapi e do arbusto Psychotria viridis. Podem-se acrescentar mais de trinta outras espécies ao cipó, como a folha de outro cipó, Diplopterys cabrerana, conhecida na Colômbia como chagro panga.

O arbusto Psychotria viridis contém um princípio ativo, a DMT (N, N, Dimetiltriptamina), que tem semelhança estrutural com a serotonina, um importante neurotransmissor do sistema nervoso central. Quando administrada por via oral, a DMT é decomposta pela monoaminoxidase (MAO), tornando-se inativa. O cipó contém alcalóides beta-carbolinas: a Harmina, a Harmalina e a Tetrahidroharmina. Esses alcalóides inibem a atuação da enzima de MAO, o que evita que esta inative a DMT contida na folha. Assim, a interação entre esses alcalóides e a DMT permite que a bebida produza alterações no corpo.

Cerca de setenta grupos indígenas fazem uso da ayahuasca na Amazônia Ocidental, geralmente associado ao xamanismo. A bebida possui um papel central na organização social e simbólica dessas populações. Em muitos casos, o mito de origem da ayahuasca ou yagé é o mesmo que narra o aparecimento daquele determinado grupo étnico na Terra. Durante a experiência, os participantes revivem cenas mitológicas que confirmam suas crenças e introjetam valores e comportamentos socialmente sancionados. A experiência ayahuasqueira está ligada também ao destino post-mortem.

O consumo indígena do cipó tem a ver com várias dimensões da vida social  aqui nos interessa, em particular, os seus usos medicinais, como o diagnóstico e a cura de doenças. No Peru, a bebida é conhecida também como la purga, devido às suas características de desintoxicação; em certas regiões da Colômbia, é denominada el remedio. Estudiosos levantam hipóteses de que o chá contenha propriedades eméticas, antimicrobianas e anti-helmínticas, o que o tornaria efetivo no combate a vermes ascáridos e protozoários. Os praticantes afirmam que a ayahuasca é útil no combate a males naturais e mágicos.

Generalizando aspectos comuns aos vários contextos indígenas, podemos afirmar que o xamã localiza, durante o transe, através de suas visões, o mal que causa a doença e/ou o responsável por ela (no caso da feitiçaria). Ele combate espíritos malignos, captura a alma do doente de volta e, por meio da sucção, retira o objeto patogênico. Dependendo do contexto, apenas o xamã toma a bebida, ou ambos, curandeiro e paciente, comungam da mesma. O tabaco é altamente estimado e, geralmente, acompanha as sessões de cura. É considerado purificador do corpo e comida dos espíritos. Outras plantas podem ser usadas, dependendo do problema.

A explicação antropológica convencional postula que o xamanismo medicinal indígena foi transportado para as populações das pequenas cidades na orla da selva, adaptando-se ao contexto de urbanização. Porém, autores como Peter Gow têm sugerido que o xamanismo ayahuasqueiro ligado à cura, tal como o conhecemos hoje, seria, de fato, freqüentemente, uma importação da cidade para a floresta, sendo menos significativo nas zonas mais marginais ao processo de contato colonial no espaço do capitalismo internacional da borracha.

O autor se refere a outra modalidade de consumo do cipó, o vegetalismo, praticada sobretudo por populações mestiças. Este fenômeno foi estudado pelo antropólogo Luis Eduardo Luna  trata-se de uma forma de medicina popular à base de vegetais, cantos e dietas. Os vegetalistas são curadores das populações rurais do Peru e da Colômbia que mantêm elementos dos antigos conhecimentos indígenas sobre as plantas, ao mesmo tempo em que absorvem influências do esoterismo europeu e do meio urbano. São procurados para sanarem problemas emocionais, físicos, psicológicos e somáticos, vícios, má sorte, questões amorosas, susto (medo que gera a perda da alma), daño (ataque prejudicial de terceiros) e mal de ojo (inveja), entre outros. Os pacientes não se envolvem necessariamente com as atividades do curandeiro  apenas alguns se dedicam ao aprendizado.

A iniciação do vegetalista é marcada por uma série de rígidas restrições alimentares e abstinência sexual, além da ingestão de uma boa quantidade de plantas psicoativas  a idéia é que o aprendiz adquire no próprio corpo a força das plantas que ingeriu nos períodos de dieta, absorvendo os espíritos dessas plantas e contatando outros espíritos protetores, os quais devem ser respeitados, pois geralmente são muito ciumentos. Durante esse processo, ele aprende os icaros  melodias ou cantos mágicos que os espíritos das plantas lhe ensinam e que representam a essência de seu poder. O ícaro possui relação estreita com o conteúdo das visões experienciadas e tem diversas propriedades, entre elas a capacidade de transportar para o vegetalista qualidades da planta evocada, curar ou prejudicar pessoas. Os curandeiros afirmam que a ayahuasca lhes ensina os idiomas indígenas dos cantos que cantam.

Uma das principais ferramentas do vegetalista é o arkana, uma espécie de armadura mágica que o protege. Outra dádiva recebida dos espíritos é uma substância chamada yachay ou mariri, secreções que o vegetalista armazena no seu corpo. Ele fuma ou traga o tabaco para regurgitar esta gosma grossa, que o auxilia a extrair objetos enviados por feiticeiros rivais, posteriormente cuspidos. Outra arma de defesa e ataque são os virotes, setas mágicas com formas variadas (de espinhos, insetos, penas, ossos) que ficam alojadas atrás do pescoço ou na espinha vertebral do praticante e podem ser enviadas a distância.

As sessões são à noite e duram várias horas. O vegetalista utiliza, além dos cantos, assobios, perfumes, uma schacapa (uma espécie de maracá feito com folhas), mapachos (cigarros de tabaco) e, eventualmente, orações  no caso dos curandeiros mais urbanos, há presença de imagens de santos, além das personagens que normalmente habitam o seu imaginário, como o chullachaki e o yakuruna. Apesar dos vegetalistas serem altamente individualistas e de haver diversas modalidades de praticantes, existe, não obstante, uma rede informal de relações que inclui a transmissão de conhecimentos ou o ataque sobrenatural.

As religiões ayahuasqueiras brasileiras
o caso do Santo Daime

Embora na Colômbia, Bolívia, Peru, Venezuela e Equador haja uma tradição de consumo da ayahuasca por xamãs e vegetalistas, curiosamente é somente no Brasil que se desenvolvem religiões que fazem uso da bebida, religiões essas formadas por populações não indígenas. A exemplo dos casos do Buiti africano e da Native American Church no México e nos EUA (que faz uso do peiote), as religiões ayahuasqueiras brasileiras reelaboram os antigos sistemas de conhecimento locais a partir de uma leitura cristã.. O Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal são herdeiros das práticas de consumo da ayahuasca pelo curandeirismo amazônico e são influenciadas, além do catolicismo popular, pelas tradições afro-brasileira, espírita kardecista, esotérica de origem européia (por meio do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento e do movimento Rosa Cruz), bem como pela religiosidade popular nordestina.

Na década de 30, Raimundo Irineu Serra fundou a religião do Santo Daime em Rio Branco (Acre), a vertente conhecida como Alto Santo; em 1945, Daniel Pereira de Mattos criou a Barquinha no mesmo estado; na década de 60, formou-se a União do Vegetal (UDV) em Porto Velho (Rondônia), através de José Gabriel da Costa. Na década de 70, apareceu o CEFLURIS, outra ramificação do Santo Daime, liderada por Sebastião Mota de Melo. A partir do final dos anos 70, a vertente daimista ligada ao Padrinho Sebastião e a UDV começaram a se expandir pelos centros urbanos brasileiros e, nos anos 90, pelo exterior. O Santo Daime possui núcleos no Japão, na Holanda, na França, na Itália e nos Estados Unidos, entre outros. Contam-se hoje por volta de 11 mil pessoas ligadas às religiões ayahuasqueiras.

A legalidade do uso da ayahuasca foi colocada em questão durante os anos de 1985 a 1987, quando a beberagem foi incluída na lista das substâncias proscritas da Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde brasileiro. Foi formada uma comissão multidisciplinar que, durante dois anos, estudou as formas de consumo do psicoativo. Como resultado, o (extinto) Conselho Federal de Entorpecentes elaborou um parecer positivo, retirando a substância da ilegalidade. Em 1992, houve uma nova tentativa de proibição, tendo sido organizada uma nova comitiva, que reafirmou as decisões da anterior.

O Santo Daime preserva o caráter sagrado da festa e da dança, oriundo do catolicismo popular. Convivem no seu panteão mítico Deus, Jesus, a Virgem Maria, os santos católicos, entidades originárias do universo afro-brasileiro e seres da natureza. Também são louvadas as figuras do Mestre Irineu, identificado com Jesus Cristo, e do Padrinho Sebastião, encarnação de São João Batista  de onde são derivadas algumas concepções messiânicas e apocalípticas. Do espiritismo kardecista são reelaboradas noções como as de carma e reencarnação. Os indivíduos possuem dentro de si elementos de uma memória divina; ao mesmo tempo, podem, através do próprio comportamento, alterar seu carma, evoluindo espiritualmente em direção a sua salvação. Em consonância com os sistemas xamânicos, verifica-se a existência de uma guerra mística entre os homens e os seres espirituais. Os daimistas são concebidos como os soldados do Exército de Juramidam, empenhados numa batalha astral para doutrinar os espíritos sem luz. Todo o ritual está permeado por um espírito militar com ênfase na ordem, na disciplina etc.

A cerimônia consiste no entoar coletivo de hinos, considerados revelações do Astral. Os trabalhos espirituais realizados pelos daimistas são de concentração (com períodos de meditação) ou bailado (execução de uma coreografia simples), podendo chegar a produzir um verdadeiro êxtase coletivo. Há também trabalhos de missa (para os mortos) e rituais de fardamento (momento em que o indivíduo adere oficialmente ao grupo, passando a usar suas vestimentas). Recentemente, vem ganhando força alguns ritos onde ocorre incorporação de espíritos, produto das influências crescentes da umbanda nesta instituição.

Um outro ritual é o feitio do daime (ayahuasca), que consiste no processo de cocção das plantas que compõem a bebida. As mulheres limpam as folhas e os homens maceram o cipó manualmente com marretas de madeira, o que envolve bastante esforço físico. O feitio é concebido como um processo através do qual a bebida é preparada e, simultaneamente, o adepto se aperfeiçoa. Costuma-se afirmar que é o daime que produz o daime. Durante o feitio, consomem-se altas quantidades da substância.

Há, ainda, diversos tipos de trabalhos de cura. Para os daimistas, a doença é compreendida como tendo suas raízes em transgressões a leis que governam o mundo social, localizadas na realidade espiritual: a cura significaria a reinserção individual numa ordem social e cósmica. Isto quer dizer que a doença espiritual e a doença física seriam simplesmente graus diferentes de uma mesma experiência de desequilíbrio. Os rituais possuem a função de descobrir as causas espirituais da aflição e o daime é o seu veículo de transformação.

Uma das formas através da qual a cura se dá é por meio dos vômitos e diarréias causados pela bebida, compreendidos como uma purificação necessária do corpo. Neste sentido, o Santo Daime aproxima-se da tradição indígena e vegetalista de consumo da ayahuasca. No Santo Daime, entretanto, o vômito é revestido também de um conteúdo moral, ligado ao comportamento do indivíduo. E existe uma ênfase muito menor na cura de males físicos: os daimistas não são médicos, como os vegetalistas, embora a dimensão mais estritamente medicinal também esteja presente, revestida de conteúdo religioso.

Às vezes, pode ocorrer, associada à limpeza (vômitos), uma experiência de intenso sofrimento: a peia, uma surra do daime. A peia está associada também a outros processos fisiológicos incômodos ou aparece, ainda, sob forma de pensamentos ou sensações. Apesar de extremamente desagradável  incluindo visões aterradoras de monstros, vermes, trevas, sensação de morte ou medo intenso, enfim, toda classe de tormentos conhecidos ou não  a peia produziria efeitos benéficos, didáticos e transformadores.

Neoxamanismo Urbano

Atualmente vários jovens do primeiro mundo têm viajado ao Peru e à Colômbia para terem experiências com a ayahuasca; alguns franceses têm procurado programas especiais, na África, que reproduzem a iniciação do culto da iboga. Novos especialistas estão surgindo: neocurandeiros de origem indígena ou mestiça que se globalizam e neoxamãs brancos que passam a se dedicar às artes nativas. Existe uma graduação nas práticas oferecidas, que vão desde as especialmente forjadas para o turista, até outras bastante próximas dos contextos regionais, compostas por vários dias de isolamento, jejum e consumo contínuo de psicoativos. Há também estrangeiros que viajam em busca de cura para problemas de saúde, artistas que almejam desenvolver sua criatividade e pesquisadores interessados no xamansimo.

Seria um equívoco, portanto, reduzir todas estas atividades em torno das plantas visionárias a uma só modalidade; porém, uma têm se destacado: o neoxamanismo urbano. Trata-se de uma porção do movimento Nova Era que faz releituras específicas das tradições xamânicas ao redor do globo, elaborando uma espécie de “xamanismo universal”, muitas vezes com cunho cristão. Esta recriação fundamenta-se na apropriação livre que os líderes fazem da literatura antropológica e das publicações esotéricas sobre o universo indígena.

O neoxamanismo é controverso. Ele tem sido criticado por tentar criar uma religião ameríndia única, homogênea, abstrata e idealizada por meio da não-referência às comunidades e etnias e, sobretudo, da falta de contato com os aspectos obscuros e conflitantes presentes no xamanismo  como a morte, a guerra, a violência e a ausência de uma distinção moral nítida entre bem e mal. Mas, por outro lado, pode-se argumentar que tais práticas são uma forma de colocar os ocidentais de classe média em contato com tradições autóctones, milenares, despertando-os para outras sensibilidades, modos de vida, visões de mundo etc.

É muito difícil, num mundo marcado pelo embaralhamento das fronteiras entre representação e realidade, distinguir práticas autênticas de não autênticas. Podemos, porém, sugerir algumas características que, em geral, só estão presentes em um verdadeiro xamã: ele não faz autopropaganda; o seu reconhecimento emana da comunidade; existe uma espécie de inevitabilidade do seu destino, que de certa forma é um fardo; o xamã tradicional pode curar, mas também causar danos; ele não fez curso de xamanismo.

 

Compartilhe: