Seriam os Deuses Alcalóides
Texto do Pad. Alex Polari, apresentado na ” International Transpersonal Associations Annual Conference “The Technologies of the Sacred” Manaus – Amazonas – Brazil
I. Introdução
Queremos abordar aqui, através da pergunta título da nossa conferência, um pouco do papel das plantas psicoativas no processo evolucionário da consciência humana e do seu emprego desde a antiguidade como indutor dos estados expandidos ou alterados de consciência. Depois nos deteremos mais detalhadamente na questão da consciência xamânica e da descrição da “miração”, estado particular de experiência mística e êxtase visionário que ocorre sob o efeito da bebida sacramental enteógena denominada SANTO DAIME (Ayahuasca, Yagé, Caapi, etc.) e que por suas peculiaridades, parecem ser comuns apenas ao relato de experiências com os compostos triptamínicos. E, finalmente, considerar em que precisamente a proposta enteógena pode se constituir em um paradigma para uma nova consciência centrada no verdadeiro Self.
II. Uma Breve Teologia dos Enteógenos
Para buscarmos uma resposta para nossa pergunta devemos retroceder cerca de três milhões de anos quando o homem, destacando-se dos demais primatas superiores começava a sua lenta evolução rumo a consciência de si mesmo. Durante o transcorrer de todo este período, o cérebro triplicou o seu peso, mas foi durante os últimos quinhentos mil anos que se formou o néo-córtex. Podemos supor a consciência desta época como sendo um imenso Id dominando um lento embrião do ego em formação. Antroposofícamente falando, as mônadas ou os princípios espirituais que estavam se encarnando nessa época na Terra, promovendo a vida e a evolução humana, ainda não estavam suficientemente ajustados aos corpos físicos desses primeiros seres humanos. Segundo Steiner, eles teriam uma consciência do plano espiritual e das auras dos seres e objetos do mundo material, mas não tinham uma percepção nítida e diferenciada dos mesmos. Isso só veio a acontecer quando houve o acoplamento definitivo entre os corpos físicos etérico do homem, quando do ambos passaram a coincidir. Nesse momento, a consciência humana teria deixado de ser uma “consciência de clarividência nebulosa” para ganhar mais nitidez na apreensão do mundo material.
Nos últimos cem mil anos o processo se acelerou de forma significativa. O Homo Sapiens tornara-se senhor do planeta e já devia contar com algo próximo de uma consciência de si mesmo como indivíduo singular da sua espécie e um sistema rudimentar de comunicação querendo se articular enquanto linguagem. Foi na última fase deste período, nos últimos trinta mil anos, que uma verdadeira revolução ocorreu no processo evolutivo. Por essa época, os nossos ancestrais caçadores e coletores já tinham uma forma de organização solidária que lhes garantiam a sobrevivência frente ao ataque dos predadores e os rigores do meio ambiente. Até hoje, pesquisadores e cientistas buscam uma boa resposta para essa aceleração evolucionária, que corresponde aos últimos preparativos para que a humanidade entrasse na cena da história. Alguns autores, entre eles Wasson e Mckenna, apresentam uma sólida argumentação, que eu também partilho nessa exposição, de que uma das causas principais da súbita irrupção da auto-consciência humana teria sido a simbiose do homem com o mundo vegetal e especificamente com os psicoativos. Essa é a perspectiva poética e visionária que sempre se apresenta quando “consultamos” a inteligência e a memória que a Mente Vegetal guarda desses eventos. Por meio dessa tese podemos entender também, o cenário onde as hordas mais adaptadas desses homídeos onívoros ampliavam de forma crescente sua dieta e seus conhecimentos sobre as plantas nutritivas, curativas e psicoativas, o que causou mudanças e respostas cada vez mais rápidas na sua estrutura neural, estados de consciência e comportamento.
Levi Strauss, comentando a obra de Wasson, analisa o mito da árvore do conhecimento e a história bíblica de Adão e Eva, comendo o fruto proibido, como a metáfora do contato do homem com o enteógeno primordial. Em outras palavras, esse seria o momento da mudança do estado indiferenciado de clarividência nebulosa para o de auto-consciência lúcida, o que trouxe como conseqüência a sua expulsão do Éden.
No entanto, foi no final da última glaciação, que ocorreu há uns doze mil anos, que as condições se tornaram propícias para a difusão da agricultura, domesticação de animais e pastoreio. A intimidade com o manejo dessa última atividade, trouxe um contato cada vez mais estreito com os fungos psilocíbicos associados ao esterco de gado. Floresceram a partir dessa época festas consagradas aos cogumelos sagrados, como parte dos cultos à fertilidade associados à Grande Deusa. Vestígios arqueológicos da arte desse período, principalmente a partir do oitavo milênio a.C., expressam de forma literal ou estilizada, o uso cerimonial dos fungos em povos e culturas bastantes distantes entre si. O que parece indicar a importância e a universalidade desses cultos na formação daquilo que M. Eliade define como as primeiras hierofanias vegetais, uma espécie de pré-religião, primeira separação que o homem fez de uma “esfera sagrada” em oposição a um “mundo profano”. Certas plantas e árvores, ou a natureza de um modo geral, eram revestidas de atributos divinos ou mesmo divinizados. Hoje estamos em condição de afirmar que esta postura não tinha nada de ingênua ou simplória, correspondendo sim à ação da psilocibina e outros agentes enteógenos e as conseqüências das visões dela decorrentes nos mitos, símbolos e arquétipos que se apresentavam à consciência da época. Essas hierofanias vegetais foram, portanto, cronologicamente, as mais antigas que se tem notícias. O que atesta que, por esse tempo, no limiar da história conhecida, já havia uma familiaridade com o tema do sagrado/vegetal, do Deus/Vegetal, que remonta a tempos ainda mais longínquos. Sem dúvida, este foi um dos principais substratos que mais tarde vieram a formar os diversos Cultos dos Mistérios da antiguidade e às grandes religiões do mundo.
Talvez o caso mais conhecido e também o mais eloqüente seja o do Soma, que segundo os hinos do Rig-Veda era prensado e mesclado a leite para ser consumido em rituais e cerimônias dedicados ao Deus Indra. O Soma estava entronizado numa posição de destaque no Panteão Védico. É mesmo Haoma citado no Zed-Advesta, escrituras persas atribuídas a Zoroastro. O que nos permite estabelecer sua raiz ária e considerar que possa ter sido difundido pelas diversas ondas migratórias dos povos arianos que foram penetrando o Vale do Indo entre o segundo e o primeiro milênio a.C. É igualmente possível que com o passar do tempo, por dificuldades de suprimento ou de adaptação do Soma nas novas terras conquistadas, tenha havido uma planta substituta, já conhecida pelos povos drávidas que habitavam a região e cuja cultura se mesclou com a dos conquistadores. Já a Ioga e a Filosofia Sankhya seriam adições posteriores. Suas posturas corporais, métodos respiratórios e refinamento psicológico, enfatizavam a sadhana, as austeridades e a meditação como o novo método para alcançar o êxtase, o samadi, estado de consciência onde o Eu Átmico se funde no oceano de Braman. Experiência que certamente os antigos riskhis (sábios videntes que receberam a revelação dos Vedas) tiveram, embriagados pelo Soma.
Essas influências das plantas enteógenas na experiência dos estados místicos associados a cultos agrários e de fertilidade, podem ser encontrados desde a Ásia, passando pela Europa, até o extremo do continente sul-americano. O que nos permite supor que elas foram, desde uma antigüidade ainda mais remota, o agente acelerador e o detonador desse autêntico “Big Bang” da consciência que ocorreu nos últimos trinta mil anos. Existe um certo consenso de que as triptaminas tenham sido esse enteógeno primordial, não só pela reconstrução e suposição histórica, como também e principalmente por causa da excelência e peculiaridade do êxtase ou “miração” triptamínica, cujas visões são inigualáveis em florescência, intensidade, conteúdo e principalmente na capacidade do Eu interagir no interior dos eventos que fazem parte desse estado de consciência cósmica.
A consagração dos insights das visões como sendo de origem divina, explica a reverência com que essas plantas eram tratadas. O ego recém conquistado já podia transcender a si mesmo e travar contato com o Tu e com o Outro. Do respeito que nasceu do homem, com a fonte ao mesmo tempo vegetal e espiritual que lhe enviava aquela graça, aquela compreensão dele mesmo e do universo, nasceu a idéia de religiosidade, de se religar com a sua origem e pátria cósmica. Num certo sentido, religião é aquela ânsia de se relacionar corretamente com o Outro transcendente. Essa foi a aurora da consciência de si mesmo. No momento em que a consciência humana transcendeu a si mesmo e pode vislumbrar a consciência cósmica, o relâmpago precipitou-se no abismo e a Coroa do homem iluminou-se!
Por isso os alcalóides, principalmente os triptamínicos, são fortes candidatos a serem protodeuses. Sob seus auspícios, foi feita a primeira grande conexão entre o mundo da jovem consciência humana recém desperta e o mundo divino e eterno, entre o sagrado e o profano. O primeiro ancestral ou herói mítico, de Gilgamesh até Viracocha, presentes em tantas cosmogonias de culturas tão distantes entre si, são os ecos e as sombras dos tempos dos titãs. Onde esses semi-Deuses, metade homem e metade Deus, foram iniciados por instrutores de uma ordem de consciência superior – vale dizer portanto divinos – a fim de trazerem a luz, o fogo de Prometeu para repartir com os seus irmãos.
Como a maior evidência arqueológica das contribuições realizadas, quando na passagem dos “Deuses Alcalóides” pelos labirintos da consciência humana, está a presença da serotonina, neuro-transmissor cerebral encarregado de estimular os receptores dos neurônios e que tem praticamente a mesma estrutura molecular da DMT (dimetil-triptamina) alcalóide presente nas várias plantas enteógenas usadas pelos homens desde a antigüidade.
Mais maravilhoso ainda é essa oportunidade que a Mente Vegetal ofereceu à Mente Humana e continua oferecendo ainda hoje na forma da mesma revelação que foi enviada aos nossos longínquos antepassados. Isso porque, “revelação” é uma verdade sempre idêntica em si mesma, apesar de poder ser expressa por símbolos diversos dentro da psique humana. Ela é a mesma visão dos místicos e iniciados de todas as idades, o que varia é apenas a convicção e o juízo de valor que tiveram sob o que experimentaram. Isso fica claro, quando constatamos as semelhanças e pontos comuns dos relatos das experiências de êxtase nas mais diversas tradições. Se no passado foram considerados bem-aventurados “aqueles que não viram e creram”, maior prazer teremos nós quando pudermos enxergar tudo aquilo que a nossa fé sempre acreditou!
IV – Consciência Xamânica e “Miração”
Pode-se dizer que o xamanismo é o sistema de conhecimento espiritual mais arcaico que se conhece. E que, desde o começo, sua prática sempre esteve associada ao uso de enteógenos. Além de participar na maior parte de todas essas sensações, próprias dos demais estados expandidos de consciência, a consciência xamânica ou o estado de consciência xamânico também tem suas peculiaridades. A sua própria e já clássica definição como sendo “a arte do êxtase”, já pressupõe que o xamã detém um conhecimento específico de operar no êxtase e esta é a sua maior arte. Através dela, ele se aproxima de forma consciente até o máximo limiar possível da aniquilação. É este o vôo do xamã: atingir a realidade além da nossa percepção usual, mantendo sempre aberta as portas de acesso ao mundo espiritual. Porém o mais importante que queremos destacar dentro do xamanismo é a vivência, a mobilidade de atuação do Eu dentro do transe. O Eu se torna o veículo divino, a carruagem dos cabalistas (Merkabath) que alça vôo em busca dos palácios celestes. Mas ele não se limita em contemplar seus átrios e fachadas reluzentes. Ele caminha por seus labirintos, túneis secretos, ele procura conhecer o que se passa em cada um de seus aposentos e câmaras. Esse é o roteiro da “miração”, um estado de consciência místico-xamânico, obtido com a ingestão ritual do Santo Daime, que gostaríamos de nos deter mais minuciosamente.
A “miração” é um termo que foi cunhado na tradição do Santo Daime pelo Mestre Irineu para designar o estado visionário que a bebida produz. O verbo “mirar” corresponde a olhar, contemplar. Dele deriva-se o substantivo “mirante”, que é um local alto e isolado onde se pode descortinar uma vasta paisagem. A palavra “miração” une contemplação mais ação (mira+ação), o que expressa de maneira clara que o termo foi cunhado por pessoas que eram plenamente conscientes da viagem do Eu no interior da experiência visionária, característica do êxtase xamânico. E que é simbolizado pela viagem da águia voando em direção ao sol. Sem dúvida existe uma grande diferença entre uma iniciação quietista – que prepara o neófito através do silêncio e da meditação – e a iniciação xamãnica que o convida para ser protagonista totalmente responsável pelo seu desdobramento astral e vôo espiritual. Nele, somos convidados a participar de um filme em que as cenas que se desenrolam na tela, dependem, em última instância, do que está ocorrendo no interior da nossa consciência. Em outras palavras: só conseguiremos salvar a donzela do “filme astral” das garras do vilão, se a nossa disposição para tanto for tão verdadeira como a nossa capacidade de realizá-la. Temos que estar concentrados no nosso objetivo, mobilizando desde o nosso interior a coragem e a sabedoria necessária para atravessar as diversas provas do percurso iniciático. Caso contrário, a “narrativa visionária” sai do nosso controle podendo acontecer um desfecho negativo e uma interrupção do vôo do Eu rumo ao êxtase.
Estamos querendo dizer que dentro da miração o estado de ação e contemplação são como as faces complementares de uma mesma moeda. A mente, antes de dar partida ao fluxo de imagem da miração, experimenta várias outras fases de preparação. Tem que distinguir a genuína experiência visionária da imaginação pura e simples, dos jogos mentais de projeção e visualização. As imagens visionárias, os eventos visionários que envolvem o nosso Eu dentro da “miração” são de ordem psico-noética, isso é, ocorrências numa ordem de realidade contígua ao mundo espiritual. O que nos permite afirmar que a “miração” ativa os nossos corpos sutis e os libera par agir dentro do cenário feérico e numinoso da realidade xamãnica.
Esse nível de consciência atingido pela “miração” vem quase sempre acompanhado de uma voz interior que guia, acompanha ou dirige o processo. Esta é, ao meu ver, a faceta mais incomum e maravilhosa da “miração” do Daime. Durante o seu transcurso nossa consciência participa dos fenômenos psíquicos, noéticos e espirituais, através dos nossos corpos sutis. Através deles, o nosso Eu comparece nos momentos decisivos e brevíssimos onde se decide sobre o nosso destino em meio às vagas probabilidades do mar de indeterminações quânticas. Dessa forma, imprimimos movimento ao que é imutável e eterno, manifestamos vida e fecundamos a matéria por seu intermédio. Ajudamos a tecer a trama do próprio destino, a complexa textura dos eventos geradores da realidade e da vida. Isso significa que, no êxtase da “miração”, estamos travando um diálogo com Deus, estamos trabalhando com Ele, estamos sendo convocados para essa grande responsabilidade de sermos co-criadores do universo. E sem dúvida, só um destino com tal nobreza justifica o plano da criação divina, as provas da evolução, o porquê da queda luciférica, a entrada em cena do mal e a nossa tarefa de convertê-lo e reunificá-lo com a verdade até o final dos tempos. Receber essa missão é o cerne da Revelação em todos os tempos. Enquanto que o cerne da iniciação é adquirir a força de vontade suficiente para executar tudo o que foi revelado na miração.
Anteriormente nos referimos que a falta de mérito e de coragem durante o vôo xamãnico poderia desestabilizar a “miração”, ou o que é pior, fazer com que o fio narrativo da experiência visionária tenda para um desfecho desfavorável. Nesses reinos espirituais de deslumbrante beleza, parece que impera uma terrível justiça. O homem não está programado para ser perfeito. Ele tem que biológica, psicológica, social, moral e espiritualmente falando, escolher ser perfeito. Isso se faz através da faca de dois gumes do seu livre arbítrio. Graças a ele, o homem por um lado supera em estatura os deuses, devas e querubins, enquanto que por outro, se torna presa fácil da ambivalência de sua frágil inconsistência humana. O Budismo Tibetano se refere a esta eclosão súbita da ruptura do ego frente ao sublime, como sendo o momento em que, dentro da meditação, o meditador, sob a inspiração da Dakini (aspecto feminino do Buda), enfrenta as entidades terrificantes que se postam diante do Nirvana. Quando o ego consegue se apossar do Eu, a consciência já expandida se retrai novamente. Nesses momentos, as visões podem se tornar negativas, até mesmo terrificantes e isso está associado aos efeitos purgativos e miméticos da bebida enteógena indutora da “miração”. Reconhecido porém o impostor, é a hora da consciência, à semelhança da esfinge, lançar o seu desafio: Decifra-me ou te devoro! Somos cobrados a apresentar um desempenho compatível com a nossa presunção de alcançar a imortalidade. Se nessa hora não tivermos verdade para apresentar, o monstro elemental por nós mesmo criado, nos come. O Poder nos cobra sempre a nossa transformação para podermos continuar no caminho. Pois sem a verdade no ser, o caminho se torna perigoso para o impostor.
É o que *Sebastião Mota*, um dos principais “padrinhos” do Daime chama da necessidade de “ser em vez de parecer”. Ser verdadeiro é pois a ciência para entramos totalmente seguros nos estados elevados de consciência e deles conseguirmos sair, trazendo no retorno novas aquisições para continuarmos a Busca. Nos níveis sutis, a verdade atrai a verdade. O ser manifestado enquanto verdade é a matéria prima da criação. Quanto mais estamos na verdade, mais se apresenta a nós na miração aquilo que precisamos ser. E Deus nos usa como peças do seu quebra-cabeças divino, nos inspira amor e nos torna cúmplices da sua obra. A verdade do ser é exata, nela nada falta nem sobra. Não há lugar para condicionamentos mentais, hábitos viciosos disfarçados de caráter, máscaras ou papéis sociais. Se o nosso coração nos acusa, é porque não temos verdade. E sempre que esta falta de verdade interromper a nossa “miração”, desestabilizando-a, devemos aproveitar o seu momento sagrado para pedir ao Poder que nos conceda a chance de nossa transformação. O sofrimento e o desconforto, que às vezes essa disciplina nos acarreta, depois sempre é sentida como benéfica. Eis a autêntica terapia xamânica, uma terapia de conversão à verdade, onde nos afastamos das ilusões e das samsaras nos tornando cada vez mais conscientes do nobre script que Deus nos reservou.
Tentamos aqui, violando o item da inefabilidade da experiência mística, expressar de alguma maneira com as palavras, essa sensação extraordinária que é trabalharmos projetados em nossos corpos sutis nas oficinas seráficas da criação divina. Isso ocorre, como já vimos, mediante à atuação do Eu Superior no interior das imagens visionárias, como se a “miração” fosse um jogo interativo de “realidade virtual espiritual”. Para que esse processo traga benefícios que possam ser incorporados ao ser, exige-se deste uma postura passiva-receptiva e um padrão mental positivo e elevado. Dessa forma é que a barquinha da consciência pode navegar nas ondas do mar sagrado, que é a Mente, e se manter com as velas enfunadas em meio ao mau tempo e aos maus pensamentos.
Para finalizar esse ponto, gostaríamos de nos referir sucintamente a duas questões conexas à nossa abordagem de estado de consciência xamânico da “miração”. Trata-se do carma e da mediunidade, aspectos ligados ao tema da cura xamânica. Num certo sentido, a cura espiritual já é a própria imersão do Eu nesses estados elevados de consciência, fazendo com que ele amplie a sua visão interna sobre as causas dos desequilíbrios que geram as doenças. Nessas vivências visionárias do Eu no interior da “miração” também ocorre dele se lembrar de fatos relativos às suas vidas passadas, facilitando a compreensão de padrões cármicos que precisam ser interrompidos nessa encarnação.
Já o fenômeno da mediunidade, não se resume apenas ao transe e à incorporação. Num outro sentido, ele trata também da miríades de pequenos “eus” que orbitam em torno do nosso Eu central. E que à primeira distração nossa, entram por dentro da casa e assumem o lugar do dono. Em alguns estágios da “miração” podemos perceber esses “eus” como seres. Podemos perceber que cada pensamento que flui na nossa mente é um ser e com isso, aprendemos a melhor ajustar o nosso dial mediúnico para captar apenas a frequência dos seres que nos interessam. Mas nem sempre podemos escolher o que chega à nossa mente. Portanto esse canal mediúnico também nos ajuda a auto-doutrinar os maus pensamentos e afastar as más influências psíquicas e espirituais que podem se tornar nossos futuros obsessores.
Tentamos expressar um pouco o nosso entendimento da “miração” compreendido como um estado de percepção mística que guarda várias semelhanças com aquilo que denominamos consciência cósmica. Escolhemos um aspecto da “miração”, a saber o da relação interativa do Eu com as visões, característica da tradição xamânica. Isso porque, a “miração” é ao mesmo tempo uma realidade visionária em movimento e um estado de contemplação extático. À maneira do samadi, comporta vários estágios, graus e possibilidades de realização. Apresenta planos e panoramas imensos e às vezes passa tempo trabalhando apenas alguns fotogramas. Sua meta suprema é a realização do Eu superior do homem. Apesar da ajuda inestimável das plantas sagradas para a sua consecução, o trabalho espiritual da “miração” nunca termina. Continua no dia-a-dia através do esforço de se manter coerente com os seus ensinos.
Algumas vezes, através da “miração”, temos uma percepção clara da realidade espiritual da vida além do corpo. Penetramos assim no mistério que a nossa ignorância chama de morte, mas que não passa de uma transição para um outro estado de consciência. Voltar dessa experiência da “morte” com conhecimento do que isso seja, significa ter renascido e recebido o mais alto grau de iniciação, independente do credo que cada um professe.
Por isso consagramos o ser divino presente nessas plantas amigas e professoras do homem e a “miração” que ela nos fornece. Mesmo que o seu uso responsável seja sempre benéfico, é porém dentro de um contexto ritual e religioso, que sentimos uma maior segurança para a utilização profilática e terapêutica dos enteógenos.
V. O Contexto Ritual da Miração
No movimento religioso do Santo Daime existem diversas modalidades de ritual: concentração, cura, feitio da bebida, estudo e desenvolvimento mediúnico e as festas dos hinários, que é a forma que nos deteremos mais aqui.
No hinário, dentro de um amplo salão na forma de uma estrela de seis pontas, se perfilam os batalhões masculino e feminino, e dos rapazes e das moças, cada um com seu setor de base. Os neófitos, idosos, senhoras e crianças, ficam sentados mais ao fundo. O sacramento enteógeno é distribuído, todos entram em fila e começa o bailado ao som dos hinos, que são cantos que os mestres e outros membros mais avançados da irmandade recebem por ocasião da miração, sendo desta forma considerados ensinos divinos, mensagens do poder do Daime para todos e não apenas para quem o recebeu. Todos cantam e bailam dentro de um retângulo de aproximadamente 80 cm. de comprimento. Cada um porta um maracá para acompanhar o ritmo do bailado. A perfeição do trabalho está na harmonia da música, no ritmo e no canto. A jornada começa no entardecer da data marcada e vai até o nascer do dia da manhã seguinte. Todo este dispositivo, predispõe seus participantes a terem uma atitude receptiva e segura em relação aos efeitos da bebida sacramental. Isto ocorre poucos minutos após sua ingestão. A consciência passa a perceber pessoas e objetos como portadoras de uma aura de leve iridescência. Logo depois sentimos uma pressão, o pulsar da energia dentro e fora do corpo, propagando-se em ondas concêntricas como uma pedra lançada na superfície de um lago. É a chegada daquilo que chamamos “Força”, a propriedade ativa do cipó, componente masculino da bebida cerimonial. O bailado e o ritmo dos maracás condensam cada vez mais energia, se constituindo também em indutores auxiliares do transe xamânico. É nesse ponto que a luz costuma chegar. A luz, o princípio feminino da folha, quando se casa com a força, o princípio masculino do cipó, gera a miração. Espoucam luzes, ouvimos zumbidos eletrônicos e o barulho de matracas. Suavemente ela se instala e nos transporta para o reino das visões. Progressivamente o nível de consciência se eleva para patamares mais elevados, tanto individual como grupalmente. Esse reservatório comum de energia psíquica e espiritual, denominamos de “corrente”, que é quem sustenta o vôo individual de cada um na miração e a beleza do conjunto. Quando isso ocorre, nosso campo visual se altera, aparecem luzes, imagens, sensações, lembranças, insights e visões. A intensidade do momento interior da viagem de cada um se expressa na força da corrente. Qualquer piscar de olhos altera o fluxo das imagens. É como se em nossa mente, um diafragma regulasse a entrada da luz e um zoom nos aproximasse dos ângulos mais desconhecidos do universo.
Dependendo do desenrolar do ritual, a corrente facilita ou dificulta a miração, sendo possível em determinados momentos, uma vivência coletiva da mesma visão, o que se constitui o ponto culminante do trabalho. Durante esse longo percurso, o eu se desdobra no astral, evoca e soluciona alguma situação cármica pendente, canaliza a energia para realizar uma cura nele mesmo ou em outro, obtém insights reveladores e libertadores para seus conflitos e é tomado por toda sorte de inefáveis estados de percepção mística, compreensão do universo, amor pelos seus irmãos, premonições e sincronicidades. Ao final de todos esses estágios, encontra-se sempre aberto à possibilidade do êxtase total e beatífico. Tudo isso, é bom que se diga, se processa em íntima conexão com a música, o canto, a dança e o ritmo dos maracás. A barquinha singra as ondas do mar sagrado da mente embalada pelos hinos que guiam a nossa travessia. Durante esta, os hinos têm o poder de responder a todas as questões que a nossa consciência coloca no exato momento em que elas são formuladas.