Xamã por Mircea Elíade

 

*Colaboração : Winner Chiu*

Mircea Eliade – Mitos, Sonhos e Mistérios

Capítulo V – Experiência sensorial e experiência mística entre os primitivos

*(trechos)*

 

(…) Uma pessoa torna-se xamã por: 1) vocação espontânea (chamamento ou eleição); 2) transmissão hereditária da profissão xamânica e 3) por decisão pessoal ou, mais raramente pela vontade do clã. Mas independentemente do método de seleção, um xamã só é reconhecido como tal no fim de uma dupla instrução: 1) de ordem extática (sonhos, visões, transes, etc.) e 2) de ordem tradicional (técnicas xamânicas, nomes e funções dos espíritos, mitologia e genealogia do clã, linguagem secreta, etc.). Essa dupla instrução, que está a cargo dos espíritos e dos velhos mestres xamãs, equivale a uma iniciação. Esta pode ser pública e constituir em si mesma um ritual autônomo. Mas a ausência de um ritual deste gênero não implica, de forma alguma, a ausência de iniciação: esta pode muito bem ter-se operado em sonhos ou através da experiência extática do neófito.

É sobretudo a síndrome da vocação mística que nos interessa. O futuro xamã singulariza-se por um comportamento estranho; procura a solidão, torna-se sonhador, adora vaguear nos bosques ou lugares desertos, tem visões, canta durante o sono, etc. Por vezes, este período de incubação caracteriza-se por sintomas bastante graves: entre os Yakoutes, sucede que o jovem se torna furioso e perde facilmente o conhecimento, refugia-se nas florestas, alimentando-se de cascas de árvores, atira-se à água e ao fogo, fere-se com facas. Segundo Shirokogorov, os futuros xamãs tongouses atravessam, com a aproximação de sua maturidade, uma crise histérica ou histeróide, mas a vocação pode se manifestar numa idade mais tenra; o rapaz foge para as montanhas e fica lá por sete dias ou mais, alimentando-se de animais “capturados diretamente por ele com seus dentes” e regressando à aldeia, sujo, a sangrar, com as roupas em farrapos e os cabelos em desordem, “como um selvagem”. Só após uma dezena de dias o candidato se põe a balbuciar palavras incoerentes.

(…) não é exato que os xamãs sejam ou devam ser sempre neuropatas: um grande número deles goza, pelo contrário, de uma perfeita saúde mental; por outro lado, aqueles que eram doentes tornaram-se xamãs justamente porque tinham conseguido curar-se. Inúmeras vezes, quando a vocação se revela através de uma doença ou de um ataque epiléptico, a iniciação equivale a uma cura. A obtenção do dom do xamanismo pressupõe justamente o desenlace da crise psíquica desencadeada pelos primeiros sintomas da vocação. A iniciação traduz-se, entre outras coisas, por uma nova integração psíquica.

(…) Os rituais iniciáticos específicos do xamanismo comportam uma ascensão simbólica ao Céu, pela escalada de uma árvore ou de um poste; o “doente” escolhido pelos deuses ou pelos demônios assiste em sonhos acordado, à sua viagem celeste até ao pé da Árvore do Mundo. A morte ritual, sem a qual não existe iniciação possível, é experimentada pelo “doente” sob a forma de descida aos Infernos: ele assiste em sonhos à sua própria ruptura em pedaços, vê os demônios cortarem-lhe a cabeça, arrancarem-lhe os olhos, etc.

(…) A grosso modo, pode-se dizer  que o processo ao qual acabamos de aludir – a “doença” enquanto iniciação – conduz a uma alteração de regime sensorial, uma transformação qualitativa de experiência sensorial: de “profana”, ela torna-se “eleita”. Durante a sua iniciação, o xamã aprende a penetrar em outras dimensões do real e aí se manter: as suas provas, sejam elas quais forem, forjam-lhe uma “sensibilidade” capaz de perceber e integrar essas novas experiências.

(…) Tocado pelo raio, o Yakoute Bükes Ullejeen é reduzido e disperso em mil pedaços, o seu companheiro corre à aldeia e regressa com alguns homens para recolher os restos e preparar o enterro, mas encontra Bükes Ullejeen são e salvo. “O Deus do Raio desceu do Céu e cortou-me o corpo em bocadinhos, di-lhe Bükes. Agora ressuscitei como xamã e vejo o que se passa à minha volta até uma distância de trinta verstas”.

(…) Ora esta modificação da sensibilidade obtida espontaneamente pela prova de um acontecimento insólito, é laboriosamente procurada durante o período de aprendizagem por aqueles que buscam a obtenção do dom xamânico. Entre os Esquimós Iglulik, o jovem ou a rapariga que desejam tornar-se xamãs apresentam-se diante do mestre com um presente e declaram: “Venho a tua casa porque quero ver”. Instruído pelo mestre, o aprendiz passa longas horas na solidão: esfrega uma pedra sobre outra ou fica sentado na sua cabana de neve a meditar. Mas deve passar pela experiência da morte e da ressureição místicas; cai “morto” e fica inanimado três dias e três noites, ou é devorado por um enorme urso branco, etc. “Sairá então o urso do lago, devorará toda a carne e fará de ti um esqueleto, e tu morrerás. Mas recuperarás a tua carne, despertarás e as tuas roupas voarão para ti”.
O candidato acaba por obter a “luz” ou a “iluminação” (qaumaneq), e essa experiência mística, que é decisiva, dá ao mesmo tempo origem a uma nova “sensibilidade” e revela-lhe capacidades de percepção extra-sensorial. O qaumaneq consiste numa “luz misteriosa” que o xamã sente subitamente no corpo, no interior da cabeça, no próprio coração do cérebro, um inexplicável farol, um fogo luminoso, que o torna capaz de ver no escuro, tanto o concreto como o visualizado, porque ele consegue agora, mesmo de olhos fechados, ver através das trevas e aperceber-se de coisas e acontecimentos futuros, escondidos aos outros seres humanos.

(…) Esta experiência está relacionada com a contemplação do seu próprio esqueleto, exercício espiritual de uma grande importância no xamanismo esquimó, mas que se encontra igualmente na Ásia Central e no tantrismo indo-tibetano. (…) Eis o que relata Rasmussen: “Ainda que nenhum xamã possa explicar como e porquê, apesar disso, consegue pelo poder que o seu pensamento recebe do sobrenatural, despojar o seu corpo da carne e do sangue, de tal maneira que não lhe restem senão ossos. Deve então mencionar toda as partes do seu corpo, indicar cada osso pelo seu nome; para isso não deve utilizar a linguagem ordinária humana, mas unicamente a especial e sagrada dos xamãs, que aprendeu com o seu mestre. Vendo-se assim, nu e completamente privado da carne e do sangue perecíveis e efêmeros, consagra-se à si próprio, sempre na linguagem sagrada dos xamãs, à sua grande tarefa, através da parte do seu corpo que está destinada a resistir mais tempo à ação do sol, do vento e das intempéries”

(…) Tal exercício espiritual implica a “saída do tempo’, porque o xamã não só antecipa por uma visão interior a sua morte física, como recupera aquilo a que poderíamos chamar a fonte intemporal da Vida.

(…) Por vezes o simbolismo da agonia, da morte e da ressurreição místicas é representado de uma maneira brutal e orientado diretamente para a alteração da sensibilidade: certas operações dos aprendizes xamãs denunciam a intenção de “mudar de pele “ou modificar radicalmente a sensibilidade por torturas e intoxicações sem conta. Assim os neófitos Yamana da Terra do Fogo esfregam a cara até criarem uma segunda e mesmo uma terceira camada de pele, “a pele nova”, visível apenas aos iniciados.

(…) Entre os Caribes da Guiana Holandesa, os xamãs aprendizes sofrem uma intoxicação progressiva com sumo de tabaco e cigarros que fumam sem parar; mestras esfregam-lhes todas as noites os corpos com um líquido vermelho; escutam lições dos mestre com os olhos bem esfregados com suco de pimenteiro; finalmente, dançam, um de cada vez, sobre cordas estendidas a diferentes alturas ou balançam-se no ar pendurados pelas mãos. Atingem finalmente o êxtase sobre uma plataforma “suspensa do teto da cabana por várias cordas torcidas em conjunto que, ao desenrolarem-se, fazem girar a plataforma cada vez mais depressa”.

(…) Uma das provas iniciáticas própria do xamanismo implica a capacidade de resistir tanto ao frio extremo quanto à temperatura da brasa. Assim, por exemplo, entre os Manchus, o futuro do xamã deve passar pela seguinte prova: cavam-se, no Inverno, nove buracos no gelo; o candidato deve mergulhar por um destes buracos e voltar a sair, nadando sob o gelo, pelo segundo, e assim sucessivamente, até ao nono buraco. Ora, certas provas iniciáticas indo-tibetanas consistem justamente em verificar o grau de preparação de um discípulo pela sua capacidade de secar por meio do seu corpo nu em pleno neve, durante uma noite de inverno, um grande número de tecidos encharcados. Este “calor psíquico” tem, em tibetano, o nome de gtúmno (pronuncia-se: tumô ). Mergulham-se panos em água gelada; eles congelam e saem de lá tesos. Cada um dos discípulos enrola em torno de si um deles e deve descongelá-lo e secá-lo sobre o corpo. Logo que a roupa esteja seca, volta-se a mergulhá-la na água e o candidato envolve-se de novo com ela. a operação reproduz-se assim até ao nascer do dia. Então aquele que secou o maior número de panos é proclamado vencedor da competição.

(…) O “calor mágico” está relacionado com uma outra técnica que se poderia chamar “domínio do fogo” e que torna o praticante insensível à temperatura da brasa, Quase por todo o lado no mundo xamânico se registram tais explorações, que fazem lembrar os pródigos do faquirismo: preparando o seu transe, o xamã brinca com carvões em brasa, engole-os, toca em ferro ao rubro, etc.

(…) O “domínio do fogo” e a insensibilidade, tanto ao frio extremo quanto à temperatura da brasa, traduzem materialmente o fato de o xamã ter ultrapassado a condição humana e participado já da condição dos “espíritos”.
Ao nível das religiões arcaicas, participar na condição dos “espíritos” é o prestígio por excelência dos místicos e dos mágicos. Da mesma forma que os “espíritos”, os xamãs são “incombustíveis”, “voam” pelos ares, tornam-se invisíveis. Tornar-se-nos aqui necessário chamar a atenção para um fato que é importante: é que a experiência suprema do xamã resulta no êxtase, no “transe”. É durante o seu êxtase que ele empreende, em espírito, longas e perigosas viagens místicas até aos mais altos céus, para se encontrar com Deus, ou até à Lua, ou descendo aos Infernos, etc.

(…) Tudo isto é muito natural: tendo já conhecido, através da sua iniciação, a morte e a ressurreição, o xamã pode assumir impunemente a condição de desencarnado; pode existir como “alma” sem que a separação de seu corpo lhe seja fatal. Cada “transe” é uma nova “morte”, durante a qual a alma abandona o corpo e viaja em todas as regiões cósmicas.

 

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